A família senhorial apresentava algumas características também encontradas no restante da sociedade. Elas podiam ser “extensas” – englobando familiares e agregados, parentes, filhos bastardos e concubinas. Ou elas podiam ser monoparentais. Essas eram em geral lideradas por viúvas que viviam com seus filhos e irmãos ou irmãs solteiras. Em ambos os casos, eram comuns as núpcias entre parentes próximos, primos e até meios-irmãos. Graças aos casamentos “endogâmicos”, as famílias senhoriais aumentavam sua área de influência, aumentando também suas terras, escravos e bens. O casamento com “gente igual” era altamente recomendável e poucos eram os jovens que rompiam com essa tradição. O dia a dia destes grupos transcorria em meio ao grande número de pessoas. As mulheres pouco saiam de suas casas, empregando seu tempo em bordados e costuras, ou no preparo de doces, bolos e frutas em conservas. Eram chamadas de “minha senhora”, pelos maridos.
Embora a Igreja considerasse o vínculo do matrimônio indissolúvel, esse nem sempre se extinguia com a morte de um dos cônjuges. Crises? Sim. Separações e anulações do contrato, enclausuramento de mulheres em conventos femininos, bigamias e mesmo assassinato do cônjuge ocorriam. Em outubro de 1795, numa Relação de presos culpados por morte na cadeia do Rio de Janeiro, se encontravam quatro esposas que tinham eliminado seus maridos. Na capitania do Maranhão, em 1804, D. Maria da Conceição foi condenada por ter mandado matar e assistido “à morte aleivosa” de seu marido. Ela vivia “em pública e adulterina devassidão” com o co-réu do crime, sobreiro e caixeiro do marido “com quem se ajustara a casar por morte deste”. Em maio de 1816, foi a vez de prenderem no Rio de Janeiro certa Joaquina Marinha de Albuquerque que matara o seu cônjuge com uma corda, juntamente com um cúmplice. Tentativas de envenenamento, várias. O uso do vidro moído misturado aos alimentos era corrente.
Não faltaram uxoricidas. Homem de negócios, Vitorino Vieira Guimarães ferira de morte sua mulher, D. Helena da Silva, fazendo-lhe 18 feridas com um prego aguçado. A acusação de adultério contra a morta foi aceita, embora ela fosse conhecida por ser “entrada em anos, doente, notoriamente honrada e bem-procedida”. Já Vitorino, era renomado concubinário, desfilando com sucessivas amantes. Mas, tinha “poder, arte e amigos”. Por meio de provas falsas, conseguiu provar ao magistrado que sua mulher o enganava, e que agiu para “limpar sua honra”.
Era comum que homens de condição elevada obtivessem “seguro real” para cuidar de suas causas em liberdade, mesmo quando bastante evidente o crime. Em geral, eram desculpados por cometer crimes “por paixão e arrebatamento”. Já a gente de cor não encontrava o mesmo apoio junto aos magistrados, pois esses não achavam que negros e mulatos tivessem honra a defender, explica Nizza da Silva. Certo Manoel Ferreira Medranha, pardo liberto, foi condenado a degredo para toda a vida em Angola, além de pagar uma pena pecuniária por ter matado a mulher.
Se havia diferenças entre assassinos pobres e ricos, havia pior distinção entre homens e mulheres. Enquanto entre as segundas não se colocava sequer a possibilidade de serem desculpadas por matarem seus maridos adúlteros, o marido traído que matasse a adúltera não tinha qualquer punição. Ele estava protegido pelas Ordenações Filipinas: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar ações a ela, como ao adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou pessoa de maior qualidade”. A condição social do parceiro de adultério era levada em conta. A da adúltera, não contava. Morria a plebeia ou a nobre.
Outra forma de punição feminina era a reclusão nos conventos, muitas vezes, perpétua. Para trancafiá-las era preciso uma permissão da autoridade, fosse essa do rei- do vice-rei ou do bispo. E a partir de 1808, do intendente geral da polícia do Rio de Janeiro. Um exemplo: em 1771, Bento Esteves de Araújo suspeitando de que sua mulher, Ana da Cruz, lhe era infiel, conseguiu sua confinação no convento de Nossa Senhora da Ajuda, no Rio de Janeiro. Ana tentou sair de lá, mas o marido reagiu escrevendo às autoridades e dizendo-a “um monstro”. Qualquer retirada, alegava, seria “vergonhosa”. Mas a paixão devia ser grande, pois lhe escrevia, “não tenho tempo de narrar o que tenho sentido a seu respeito… Olha fiquei tão fora de mim que cheguei em casa todo molhado […] Infinitas vezes tenho de noite acordado todo elevado, e querendo completar toda à vontade não acho o que tenho no sentido, pois cada dia, são mais de mil lembranças destas[…]”. E avisando à esposa que iria visitá-la às escondidas, rabiscava: “Estando o prego fora avise que lá irei dizer-lhe um adeus, ouviu. Rasgue logo esta. Seu marido”.
Esse tipo de punição era tão corrente que chamou atenção dos viajantes estrangeiros como Luccock e Leithold que mencionavam os conventos como lugares onde os maridos podiam encerrar as mulheres, “por capricho ou outras razões”. O encarceramento podia ser para sempre, bastando para isso, sustentá-las com alimentos lá dentro.
Violência entre cônjuges? Muita e desde sempre. “Dar má vida à mulher”, “viver em bulhas”, “dar pancadas” ou “açoitar como um negro” são expressões que aparecem normalmente nas Devassas Episcopais em toda a parte. Afrontas de todo o tipo eram perpetradas, como, por exemplo, alguns maridos dedicar tratamento ímpar às suas amantes: não alimentavam suas famílias, mas cobriam de mantimentos a “outra”. Vestiam a amásia enquanto a esposa andava em andrajos. Faziam a mulher trabalhar, enquanto a concubina, muitas vezes mulata e negra, era “tratada como senhora da casa”. “Dar o tratamento que Deus manda” à esposa, era recomendação da Igreja aos maridos violentos. Na crise do matrimônio, a mulher era a primeira a sofrer, explica Luciano Figueiredo que estudou as famílias em Minas Gerais.
A fragilidade do casamento não resistia, muitas vezes, à violência e ao abandono. Há registros de mulheres que fogem de seus cônjuges, voltam para a casa dos pais, tentam refazer suas vidas. Quem julgava os comportamentos, apoiando um ou outro lado do casal, era a comunidade. Vizinhos, amigos e parentes se uniam ao cônjuge ofendido para apoiá-lo perante os bispos que visitavam as paróquias distantes avaliando sua situação. Eram as chamadas Visitas Pastorais, ou “pequenas inquisições” – como as chamou Figueiredo – por meio das quais se tentava disciplinar a população e avaliar a administração eclesiástica. Mas se a mulher “andava vagabunda”, era “adúltera” ou “meretriz”, perdia os apoios comunitários. Passava-se de relações conjugais para uniões consensuais. Viver em concubinato era opção imediata, menos dispendiosa e desligada de obrigações institucionais e burocráticas, tornando-se o inimigo implacável da Igreja. Vale lembrar que a atividade comercial de muitas mulheres lhes dava independência suficiente para estabelecer novos amores. Punição para os concubinários? Pouca… Recusa dos sacramentos e proibição de assistirem missa, por vezes, expulsão da comunidade.
- Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Ed. LeYa, 2016.
“Jantar em casa brasileira”, de Debret.
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Mary, muito bom seu texto e, principalmente, por fazer emergir tema tão atual, mas tem suas raízes fincadas no período colonial. Muito embora eu acredite realmente que este modelo de família esteja ruindo a si próprio, por vários fatores que a modernidade trouxe como elementos de ruptura, concordo que ele ainda é e continuará sendo muito presente na construção do conceito de família, no Brasil.
Sou aluno da UFF no curso de História e tive a honra de ter tido aulas com o professor Luciano de Figueiredo Raposo e ter podido estar mais próximo de suas pesquisas sobre o tema. Parabéns!