Dia dos Namorados: amores “misturados” ou inversão de papéis?

        No ano passado, foi uma peça publicitária de O Boticário para o Dia dos Namorados que causou polêmica. Neste ano, é um comercial da C&A que é que está irritando de uma parcela dos brasileiros. Se o comercial da fabricante de cosméticos seguia um roteiro bem tradicional, apresentando alguns casais heterossexuais e homossexuais trocando presentes, o da marca de fast fashion é um pouco mais ousado. Resultado: a campanha “Dia dos Misturados”, da C&A, será avaliada pelo Conselho de Ética do Conar, após receber reclamações de consumidores que questionavam a responsabilidade moral e social da marca. O filme mostra casais (também heterossexuais e homossexuais) trocando suas peças de roupas. Em alguns casos, os rapazes vestem as roupas de suas namoradas e vice-versa. Isso bastou para escandalizar alguns.

         No que se refere à moda, o comercial da C&A acerta em cheio. O conceito de misturar peças, cores, estampas, texturas e estilos não poderia ser mais moderno, apesar de não ser algo “novo”. O masculino está presente na moda feminina desde as primeiras décadas do século passado: a diva alemã Marlene Dietrich marcou época com suas calças compridas e peças com toque meio andrógino, nos anos 30 do século XX.  Coco Chanel havia trazido as calças para o guarda-roupa feminino, e Dietrich foi uma das pioneiras a ousar em seu estilo. Os homens também têm recebido influências femininas ao logo do século, ainda que as saias para eles ainda sejam reservadas apenas para os muito corajosos. Se voltarmos um pouco mais, ao século XVIII, por exemplo, podemos observar que os rapazes andavam bem mais enfeitados que as senhoras, pois não faltavam rendas, cores, saltos altos, joias, maquiagem e perucas…

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       O problema do comercial, contudo, não é relativo à moda. Alguns se “chocam” pela presença dos casais homossexuais, que está longe de ser uma novidade na História. Nas civilizações antigas, não faltam registros de suas práticas. Os termos “lesbianismo” e “lésbica”, por sinal, têm origem na ilha grega de Lesbos, local de nascimento da poeta Safo (século VII a.C.).  Ela escreveu poemas de conteúdo erótico, dedicados à homossexualidade feminina. No Brasil, temos registros de relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero desde o início da colonização. Na visão dos missionários e cronistas europeus, os índios apresentavam sexualidade tão devassa que só podiam mesmo ser escravos do Diabo: nus, polígamos, incestuosos, sodomitas. Dizia Gabriel Soares de Souza, em 1587: “Não contentes em andarem tão encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são muito afeiçoadas ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta”.

            E não eram apenas os nativos, entre os colonos – inclusive entre os clérigos – havia relacionamentos considerados pouco ortodoxos na época. Nos tempos das visitações da Inquisição no Brasil, os processos de sodomia masculina, por exemplo, revelavam amantes que “andavam ombro a ombro”, abraçavam-se, trocavam presentes, e penteavam-se os cabelos mutuamente à vista de vizinhos, desafiando a Inquisição, sua grande inimiga. A igreja católica combateu as práticas homossexuais de forma sistemática. A Inquisição perseguia aqueles que praticavam a sodomia, também conhecida como “abominável pecado nefando”. No século XVII, o Santo Ofício decidiu que o alvo de suas investigações seriam os homens, ou seja, os pecadores que deveriam ser mais duramente punidos eram os homens homossexuais. E as mulheres que amavam mulheres?

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         Não havia muitos relatos desta prática na Europa, e a maioria ocorria na vida da corte ou nos conventos. No Brasil, durante a primeira Visitação do Santo Ofício ao Nordeste (1591-1595), 29 mulheres foram arroladas por Heitor Furtado Mendonça como sodomitas. Segundo Ronaldo Vainfas, tais comportamentos eram difíceis de serem distinguidas das práticas do cotidiano feminino da Colônia. “Por outro lado, muitos namoricos não passavam de experiências de moçoilas recém-saídas da puberdade”, diz. Várias mulheres adultas, casadas ou viúvas, também confessaram intimidades com amigas de infância. Vainfas também relata que havia mulheres casadas que preferiam o amor de outras mulheres.  Na metade do século XVII, a Inquisição praticamente abriria mão da jurisdição sobre este crime, considerando que as mulheres eram incapazes de praticá-lo por razões anatômicas.

        Em meados do século XIX, Mary del Priore destaca que a medicina legal começava a desenhar o perfil do “antifísico”: um tipo humano relacionado a determinadas formas de animalidade, dentre as quais as relações homoeróticas. Imediatamente a seguir, a homossexualidade, associada a uma herança mórbida tornava-se alvo de estudos clínicos. O homossexual não era mais um pecador, mas um doente, a quem era preciso tratar. No século XX, as coisas não mudariam muito, e os homossexuais tiveram que viver seus amores nas sombras, pelo menos até os anos 60. Não faltaram tratamentos médico-pedagógicos que eram sugeridos, junto com a religião, como remédios para a “inversão sexual”, e até o confinamento em hospícios.

      No século XXI, depois da revolução sexual do século passado que supostamente teria trazido mais tolerância às práticas sexuais, percebemos que o comportamento ainda escandaliza alguns. Parece-me, entretanto, que o pouco de ousadia do comercial não está somete na presença de casais homossexuais, mas na insinuação de “inversão de papéis”que é feita por meio da moda. O mundo mudou: homens estão assumindo tarefas supostamente femininas, como cuidar da casa, dos filhos, cozinhar; enquanto as mulheres saem de casa, assumem cargos de chefia, têm participação política e querem ter direito sobre o próprio corpo. As mulheres cada vez mais se engajam nessa luta. Isso pode assustar alguns, pois supostamente ameaçaria a estrutura da “família tradicional” (que sabemos não ter seguido os padrões idealizados desde os primórdios da colonização).

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       Temos visto o quanto as questões de gênero têm enfrentado resistência em setores da sociedade brasileira. Mesmo em um cenário repleto de casos de estupro, discriminação, abusos sexuais, bullying, violência e intolerância, muitos ainda rejeitam categoricamente a abordagem do tema nas escolas ou em casa. Erroneamente chamada de “ideologia de gênero”, muito confundida com a orientação sexual, a discussão dos papéis sociais dos gêneros no mundo atual é necessária e urgente. De certa forma, a conhecida marca de moda tocou no assunto, mesmo que de maneira sutil, e logo provocou reações raivosas…Se voltarmos nossos olhos para o passado, veremos que o que era considerado “coisa de homem” ou “assunto de mulher” se transformam significativamente.

       O tema da campanha é “misture, ouse e divirta-se”. E também podemos aproveitar para reflitir sobre a sociedade e os relacionamentos que estamos construindo.

Feliz Dia dos Namorados!

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

 

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Divulgação C&A; Marlene Dietrich: encantou e escandalizou ao vestir smoking.

 

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  1. Leda Dias

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