Os pobres são sempre os “outros”…

Uma colunista de O Globo tem causado alvoroço nas redes sociais devido a um texto em que ela ironiza os “pobres”. Segundo a moça, em uma tentativa infeliz de fazer humor, “pobre” adora ficar doente para frequentar laboratórios e consultórios médicos. E “eles” fazem milhões de exames e consultas, já que o “convênio cobre”, ainda de acordo com a autora. São tão preguiçosos, que basta tirar sangue para querer faltar no trabalho, afirma. Mas, quem são “eles”, os “pobres”, essa turba que teria resolvido invadir espaços antes dominados pelo bom gosto e fina educação? E de onde vem esse desprezo pelos brasileiros economicamente inferiores?

Quando estudamos um pouco da História do Brasil, observamos que, desde os primórdios da nossa sociedade, a forte hierarquização moldou um pensamento, que parece persistir até hoje, de que é preciso se distanciar dos elementos inferiores. É preciso diferenciar-se, marcar os limites entre as classes de forma clara, sem que haja espaço para dúvida. Os escravos, que estavam no nível mais baixo da escala social, sofriam uma série de restrições, inclusive quanto ao vestuário. Não podiam usar sapatos, nem tecidos finos ou determinados tipos de joias.

E os homens e mulheres livres e pobres, que faziam trabalhos braçais ou mecânicos, como se dizia então, também estavam sujeitos a normas rígidas. Nas Cartas do Senado da Bahia, entre vários assuntos, percebe-se que os vereadores estavam preocupados em fiscalizar “os maus costumes de trajes desonestos e danças lascivas”.  Em 15 de dezembro de 1708, os zelosos legisladores pediam que fosse instituída uma norma proibindo as negras cativas e forras, e todos os negros e mulatos, de usarem sedas e outros tecidos finos, joias, brocados e adereços de ouro, “pelo bem público, reconhecendo quanto a este prejudica o excesso e luxo com que os negros e mulatos se vestem nesta terra, pois deles nascem os roubos e insultos […]”. 

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Além de detalhar o que negros e mulatos poderiam vestir, o Senado ainda tentava normatizar os modos das prostitutas e homens do povo, destacando que estes só poderiam utilizar redes para serem transportados, sendo-lhes proibidas as liteiras fechadas e ornamentadas com riqueza. “[…] que as mulheres meretrizes e homens mecânicos não andem em serpentinas, mas só possam usar redes descobertas os homens, e com alcatifas (tapetes) as meretrizes […]”.  Note-se que os chamados homens bons do Senado colocaram no mesmo nível vários elementos da “arraia-miúda”, porém respeitando a hierarquia.

Um grupo que desafiava, de certa forma, as regras vigentes era o dos forros ou alforriados, ex-escravos que tinham conseguido comprar sua liberdade ou a tinham recebido de seus senhores. Muitas mulheres nessa situação tinham a proteção de senhores ricos (o caso mais famoso foi de Chica da Silva), o que incomodava a alta sociedade. Elas frequentavam missas e outros locais, levadas por escravos em suas cadeirinhas luxuosas e vestidas como qualquer senhora branca.  O governador de Minas, em 1732, Conde Gouveia, achava um absurdo assistir ao desfile das “atrevidas” mulheres “de cor”, no Tejuco, entrando “na casa de Deus com vestidos ricos e pomposos e totalmente alheios e impróprios de suas condições”.

Ou seja, na sociedade brasileira sempre se hostilizou aqueles que “não sabem o seu lugar”. Nesse contexto, paradoxalmente, não é de se estranhar que os pobres e forros se esforçassem para juntar algum dinheiro para comprar escravos (nem que fosse apenas um), tecidos finos (mesmo de segunda mão) ou joias. Ninguém queria estar estigmatizado como pertencente à camada mais baixa da hierarquia, todos sonhavam em ser aceitos e faziam de tudo para se diferenciar daqueles que estão abaixo. Os “pobres” são sempre os outros…

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Em resumo, a jornalista nada mais fez do que retomar velhos preconceitos que, infelizmente, ainda ouvimos com uma frequência assustadora. Muita gente, como ela, continua a acreditar que se todos ficassem humildemente na sua posição, as coisas funcionariam muito melhor no Brasil: Os pobres que voltem aos serviços públicos de saúde  que é o lugar a que eles pertencem. E aproveitem e desocupem os aeroportos, shoppings e praias…Triste, mas a mensagem é essa.

– Márcia Pinna Raspanti.

 

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Senhoras e escravos (ambas de Debret).

5 Comentários

  1. marcia zanella ribeiro
  2. Mauricio
  3. José Ventura

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