“Atos nefandos”: a Inquisição e a homossexualidade dos clérigos

               Como a Inquisição portuguesa agia em relação aos homens da Igreja que praticavam a homossexualidade no Brasil Colonial? Na linguagem da época, os eclesiásticos transgressores eram acusados de sodomia, que chegou a ser chamada de vício dos clérigos, tamanha a frequência com que muitos a praticavam. Veronica Gomes, em “Atos Nefandos: eclesiásticos homossexuais na teia da inquisição” nos dá um panorama das relações sodomíticas dos eclesiásticos, cujos relacionamentos envolveram, em sua maioria, criados, escravos, mestiços e demais gentes pobres e sem ofício, compondo um mosaico de que emerge uma variedade de pessoas subalternas, tendo reproduzido as hierarquias do Antigo Regime e da sociedade colonial. No entanto, as transgressões homossexuais de parte do clero indicam que muitos não se vergaram ao discurso de submissão e austeridade veiculado pela Igreja, uma vez que, em diversas situações, conseguiram driblar a vigilância inquisitorial e criaram espaços de microliberdades para exercer sua sexualidade desviante e proibida.
        Em Portugal, no século XV, a relação entre pessoas do mesmo sexo foi chamada de “mau pecado”, de sodomia ou “pecado nefando” – ou seja, algo do qual não se deveria falar – por todas as Ordenações do Reino. Mais que condenada, foi criminalizada pela Igreja, pelo Estado e pela Inquisição, e as penas mais severas incluíam a morte. A falta contra o 6º Mandamento da Lei de Deus – “Não pecar contra a castidade” – foi caracterizada pelo padre Raphael Bluteau, no Vocabulario Portuguez e Latino (1712-1728), como uma prática que nem mesmo o diabo era capaz de cometer. E ainda que fosse realizada no âmbito privado, teria consequências coletivas: segundo a tradição judaico-cristã, que associava pecados e castigos divinos, as cidades de Sodoma e de Gomorra foram destruídas devido às práticas repulsivas dos homossexuais. Temia-se que a ira de Deus também se voltasse contra o reino português. Afinal, era expressivo o número de eclesiásticos homossexuais processados pela Inquisição, apesar dos esforços da Igreja e do Estado em promover a reforma de seus costumes e dos leigos (não clérigos), conforme as diretrizes do Concílio de Trento (1545-1563).
          A luxúria ocupou o terceiro lugar na lista dos pecados mortais em algumas constituições diocesanas portuguesas do século XVI. Zelando “pela pureza da religião e pelos bons costumes”, elas condenaram a homossexualidade, que era vista como sensualidade. As normas seguidas pelo Arcebispado de Braga, em Portugal, de 1697, afirmavam que os homossexuais violavam a Lei Divina e a própria natureza, e deveriam ser sempre castigados com a morte. Diferenciando os leigos e os eclesiásticos, eram categoricamente contra aqueles que praticavam o “mau pecado” e ordenavam que fossem castigados “conforme o Direito e Leis”. Aos eclesiásticos, previam que “[…] quando algum clérigo ou pessoa de nossa jurisdição for tão infeliz e carecido do lume da razão natural, (…) que seja convencido haver cometido tão feio delito, e pecado, será privado do ofício, e benefício, e qualquer dignidade eclesiástica que tiver; e degredado realmente […] das ordens, e entregue também à Justiça secular” – isto é, sentenciado à morte.
        Considerado um desvio moral grave, o “pecado nefando” foi criminalizado pelas Ordenações Afonsinas (1476-1477), Manuelinas (1514-1521) e Filipinas (1603). Devido à intensa perniciosidade atribuída a esta prática, a Lei geral mandava que quem a cometesse fosse queimado e “feito por fogo em pó, por tal que já nunca de seu corpo, e sepultura possa ser ouvida memória”. Nas Ordenações Manuelinas, a regra valia também para a homossexualidade feminina, que a partir de então configurou-se como um crime julgado pelas ordenações régias. As Ordenações Filipinas (1603) confirmaram a pena capital aos homossexuais – também incluindo as mulheres. As punições incluíam confisco de bens, infâmia dos descendentes e até a tortura. A homossexualidade foi o único crime moral passível de receber a pena da fogueira pela Inquisição portuguesa.
As punições aumentavam nos casos de homossexuais considerados devassos e escandalosos, que podiam ser sentenciados a degredo, açoites, confisco de bens e à fogueira.
      A censura, porém, não vinha apenas da Igreja, do Estado e da Inquisição: a comunidade também condenava os homossexuais, destaca a autora. “O padre Antônio de Souza, por exemplo, foi comparado ao próprio diabo, em 1646, pelo negro Domingos. O sacerdote, ao retornar do Reino para Salvador, pediu o moleque emprestado ao ex-governador de Angola, D. Pedro César. O negro, ‘após ter o sacerdote colocado seu membro na mão dele denunciante, e lhe dar um beijo, declarou ao Padre que não era clérigo, mas o diabo”.  Mesmo com tantos riscos, censuras e punições, muitos religiosos conseguiram contornar as rigorosas normas de conduta.
Veronica Gomes é autora de “Atos Nefandos: eclesiásticos homossexuais na teia da inquisição”, Prismas, 2015.
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  1. Ricardo Mário Gonçalves

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