Somos mais violentos do que nossos antepassados?

Por Mary del Priore.

Desde sempre a violência atravessa o tempo, as culturas, as classes sociais e, quando queremos canalizá-la ou reprimi-la, ela ressurge de outra forma. Hoje, ela nos parece onipresente e proteiforme, pois pode ser física, verbal, psicológica, sexual, familiar, coletiva, individual, enfim, ela se declina de mil maneiras. Somos mais violentos do que nossos antepassados ou, apenas, mais informados e sensíveis ao fenômeno? Nossa necessidade de segurança é maior do que a dos nossos avós? E a violência, é natural ou cultural? No passado, a sociedade se estruturava sobre valores como a honra e a pureza das mulheres. Hoje, nosso olhar se dirige mais à repressão do que às realidades do crime e da violência. O livro recém-lançado “História dos crimes e da violência no Brasil”, graças à colaboração de especialistas com horizontes diferentes de formação, tenta dar respostas a algumas dessas questões.

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Mary del Priore. Divulgação.

Violência nas telas:

Em nosso cérebro arcaico, cochilam angústias ligadas ao horror, a fantasmas, até ao medo de sermos devorados. Enquanto seres modernos, porém, nos acreditamos livres de tais angústias. Mas a indústria das telas, ao contrário, faz disso seu pão de cada dia. A cobertura mediática de guerras e catástrofes naturais, a nova moda de vampiros e mortos-vivos confirma não só a predileção por imagens violentas como explora nosso medo de ver a morte de perto. O historiador Frances Philippe Ariès, estudioso do tema dizia: “ponham a morte porta a fora e ela voltará pela janela”. É o que fazem o cinema ou às séries. Quando ligamos a TV ou compramos entrada para um filme violento, deixamos nosso código ético em outra sala. Os personagens parecem banalmente predestinados à violência. A arma que vemos cuspir fogo se torna a extensão de seus corpos.  Homens, mulheres e crianças manuseiam artilharia pesada como o fariam como uma guimba de cigarro. Acertar os tiros? Uma virtude. Bem, a gente sabe que todo código moral depende da história, da cultura e da sensibilidade de cada grupo social. Mas a atual voga de valorização de dualismo e do maniqueísmo, “o bem e o mal”, “o pobre e o rico”, “o branco e o negro” introduziram mais intolerância e violência nas telas. Mas, é sempre bom lembrar que a violência cinematográfica é da ordem das representações. Pois, apesar de nos assustarmos com as estatísticas, ainda vivemos mais seguros do que nossos antepassados.

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Violência e minorias:

Nas democracias plurais, observa-se um movimento generalizado de crescimento das identidades particulares. Para tantos particularismos distintos, (religiosos, linguísticos, de etnia, de gênero, de idade ou de traços físicos tipo “gordo”) espera-se uma política que promova a coexistência pacífica dos diferentes grupos. As diferenças culturais não devem colocar em causa os direitos do cidadão. Mas colocam. No Canadá, por exemplo, anglófonos e francófilos se desprezam. Nos EUA, as “affirmative actions” acentuaram as rivalidades interétnicas. Esse tipo de política para “proteger” as minorias, acaba por estigmatizá-las. No Brasil, a preocupação com medidas políticas sobre a diversidade é recente. Desde leis, mas, sobretudo, ações afirmativas de proteção à mulher, transgênicos, índios ou negros, idosos e crianças estão na ordem do dia. Elas também estão afinadas com a consolidação do individualismo moderno, o primado do “sujeito singular”, a valorização do eu sobre o nós e com o abandono das idéias de que os indivíduos são modelados por práticas sociais e valores comunitários. Para alguns estudiosos, a denúncia das reivindicações tomou o lugar da antiga luta de classes. Mas, na luta das discriminações, os conflitos sociais são menos legíveis e maniqueístas. Cada um de nós pode ser discriminado e discriminador, ao mesmo tempo: posso ser discriminado como negro, mas discriminar homossexuais e lésbicas. Posso ser mulher jovem e discriminar mulheres velhas ou com handicaps físicos. Não se trata, portanto, só de impedir a discriminação, mas, de ensinar a viver junto. Trata-se de combater o “coitadismo”, sintoma em que o ressentimento da vítima passa a ser parte integrante de sua identidade. Trata-se de inscrever a discriminação num registro positivo, que ajude a restaurar a auto-estima e o reconhecimento do valor do Outro.  Trata-se, sobretudo, de combater as desigualdades econômicas, o que, no nosso país é tarefa para Deus, haja visto o exemplo dado pelos políticos e o Judiciário quanto à não abrir mão de seus privilégios na Reforma Trabalhista

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Compartimentalização das cidades e proteção contra a violência

Essa “compartimentalização” tem história e não é nova: a década de 1960 marcou o arranque da construção de conjuntos habitacionais. Assistencialistas, tais conjuntos marcavam a ação do Estado como provedor. A idéia era aglutinar a população que não tinha teto. A transição de um passado rural para um presente urbano foi, então, muito rápida. E as casinhas pobres foram substituídas por construções regulamentadas pelo sistema do BNH e pela capacidade de pagamento do provável comprador. Se, também nesta década e apesar da ineficiência administrativa, a participação do governo era importante para programar projetos de urbanização, ao longo do tempo, por conta dos baixos financiamentos nacionais e internacionais, a agenda minguou. Esvaziou o papel do Estado em todo o país. A fuga de investimentos produtivos devido às várias crises econômicas jogou o planejamento urbano num quadro de desalento. A partir dos anos 80, cresceram favelas onde não havia habitação popular. No avesso da periferia, pipocaram enclaves cercados por muros altos e toda a sorte de barreiras simbólicas: guaritas, portões automáticos, quadras esportivas, piscinas. Também nasceram bairros com grandes edifícios ou residências que procuram se isolar dos segmentos médios e pobres. Isolamento, afastamento territorial e distância dos pobres virou lei. Atualmente os condomínios fechados atendem também a outros segmentos sociais e a preocupação fundamental com conforto, foi suplantada pela necessidade de segurança e status. “A cidade partida”, como a chama Zuenir Ventura, se consolidou ao longo de sessenta anos acompanhando as crises econômicas e a o crescimento da desigualdade geradora de violência.

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A violência na ditadura civil-militar:

A tortura não foi exclusividade da Ditadura Militar, pois na de Getúlio, os porões também estiveram cheias de torturados. O que as recentes pesquisas universitárias vêm revelando e que explica a insensibilidade frente ao tema é: houve um grande apoio da sociedade brasileira ao regime. Os “Anos de Chumbo”, como diz o historiador Daniel Aarão Reis, foram também os Anos de Ouro da classe média: consumo de “fusca”, TV, apartamento próprio, turismo e lazer era a regra. Quem queria os comunistas por perto?!

Tantas décadas passadas, graças aos trabalhos de historiadores do CPDOC/FGV, UFRJ e UFF sabe-se, que a grande maioria dos membros das Forças Armadas não exalta ou exaltou as brutalidades cometidas em nome do movimento de 1964. Mas a esquerda não ficou melhor no retrato, depois de ter, ela também, matado inocentes e promovido atentados, sequestros e justiciamentos. O jornalista Elio Gaspari lembra bem que “a luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista, certamente revolucionária. Seu projeto não passava pelo restabelecimento das liberdades democráticas”. Ainda hoje prevalece o mito que a luta armada buscava a democracia. Essa mudança de discurso ocorreu já na segunda metade dos anos 1970, durante a campanha pela anistia”. “Os projetos revolucionários derrotados transformaram-se na ala extrema da resistência democrática. […] Era como se ninguém quisera participar de uma revolução social, apenas aperfeiçoar a democracia”, completa Daniel Aarão Reis. “Eles não queriam apenas derrotar a ditadura. Pretendiam destruir o capitalismo como sistema”. E foi assim que as antigas organizações de luta armada, já derrotadas e exiladas, começaram a ceder ao campo democrático.  Com a Lei da Anistia, de 1979, e a saída de guerrilheiros do exílio ou da clandestinidade, muitos adaptaram o passado aos interesses políticos presentes. Conhecer melhor a história da Ditadura, faz com que a opinião pública leia esses temas de outra forma.

História do Crime e da Violência

Lançamento da Editora Unesp. Foto: divulgação Editora Unesp

 

2 Comentários

  1. António Soares Marques
  2. Ana Flora

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