Ficar doente na primeira metade do século XX alarmava. Morrer ou não morrer, era a questão. Para curar-se, se contava com a medicina liberal ou a filantrópica. A primeira, para quem podia pagar. A segunda, na forma de sociedades de ajuda mútua, entre trabalhadores. O Estado promovia assistência somente aos militares e servidores públicos. Em 1923, implementaram-se as Caixas de Aposentadorias e Pensões visando proporcionar serviços de assistência aos trabalhadores urbanos, inclusive assistência médica. Nessas Caixas, o Estado participava apenas como regulador.
Na década de 1930, período de industrialização, urbanização e intensificação do populismo, o Estado respondeu à questão social da assistência médica aos trabalhadores através do seguro social, explica a historiadora Lilia Schraiber. Foram criados, assim, os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que davam cobertura à população urbana. Por intermédio da Previdência Social, promoveu-se uma reestruturação global da organização da assistência médica, justificada pela necessidade de diminuição de custos. A medicina de Estado dividiu-se, então, em saúde pública e assistência médica. Esta última, subdividida em seguridade social e medicina privada, sendo que a primeira cresceu durante e depois da era Vargas. Antes, os serviços de saúde eram poucos e o número de médicos, pequeno. E grande parte da população não conseguia qualquer assistência médica, como vimos pelos depoimentos dos memorialistas. No entanto, a pressão dos setores médios e emergentes, sobretudo nas capitais, concorreu para o aumento de doutores e de faculdades, além de aperfeiçoamento do currículo das escolas médicas.
O crescente processo de urbanização e a lenta mudança nos padrões sanitários contribuíram para aumentar a atenção às questões referentes à saúde da população. A medicina passou a constituir uma profissão que atendia, ao mesmo tempo, às necessidades do Estado e às expectativas dos setores urbanos. O desenvolvimento brasileiro, após a II Guerra, acelerou o processo de fortalecimento de diversos grupos, da burguesia aos setores médios e ao proletariado, atraindo jovens para a carreira médica. Ficavam longe, ou melhor, ficavam na memória, as benzedeiras, os remédios caseiros e homeopáticos. A pressão social pela abertura de maior número de vagas nas faculdades, aliada à política de atenção médica à população através da implantação de hospitais e postos de saúde públicos, resultou num próspero mercado urbano para a medicina privada de alta qualidade, criando-se as condições propícias para as transformações das escolas médicas.
O resultado desse processo foi a lenta, muito lenta adequação da medicina às profundas transformações da sociedade brasileira urbana e a incorporação, pela escola médica, de disciplinas e conteúdos referentes às novas especializações. Surgiu, assim, um novo profissional médico, mais especializado, mais competente e mais prestigiado, portanto, mais caro tanto para o governo que o assalariava quanto para o paciente privado que contratava seus serviços – concluem os historiadores Lúcia Bulcão, Almir El-Khareh e Jane Dutra. No interior, porém, tudo indica que tais especialistas não chegavam e os tratamentos continuavam como dantes…
- Mary del Priore, “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol. 3)”, editora LeYa, 2017.