No lusco-fusco da tarde de verão, olhos azuis e globulosos refletiram a galeota enfeitada que se aproximou da embarcação. Vinha cercada de escaleres enfeitados, transportando as pessoas da primeira nobreza. O homem gordo que arrastava a perna era o sogro, D. João VI. A rainha, Carlota Joaquina, cercada pelas filhas Maria Teresa, Isabel Maria, Maria Francisca, Maria d’Assunção e Ana de Jesus Maria, mais o príncipe D. Pedro e o infante D. Miguel aproximaram-se para receber a dona dos olhos azuis: a arquiduquesa Maria Leopoldina Josefa Carolina Francisca Fernanda Beatriz da Áustria, princesa da Hungria e da Boêmia e princesa de Habsburgo-Lorena, filha do último soberano do Sacro-Império Romano-Germânico e imperador da Áustria, Francisco I, e de sua esposa e prima Maria Teresa de Nápoles e Sicília. Ela ajoelhouse
aos pés de Suas Majestades e abraçou os cunhados.
A moça gorda de 20 anos, mãos rechonchudas, pele cor de creme, bochechuda, não era feia nem bonita. À boca pequena, o lábio inferior saliente, caído, característica dos Habsburgo, e transmitido de geração em geração, não era visto como um defeito, e sim como o signo da ascendência real de sua proprietária. Desde menina, ela sonhara em conhecer a América. Apreciava a natureza e veio acompanhada por cientistas, botânicos e pintores. Era fruto de uma família afetuosa e de uma árvore genealógica em que se cruzavam os nomes das maiores dinastias da Europa.
Desde 1806, o sonho de D. João era unir seus filhos à Casa de Habsburgo, campeã na luta contra a França revolucionária e napoleônica, detentora de 28 milhões de habitantes, além de senhora de 39 estados. Um colosso! E ele queria não um, mas dois casamentos. Além de Pedro, pretendia ligar a filha Isabel a Ferdinando, príncipe herdeiro da Áustria. O acordo não foi viável, e, só depois de muitas hesitações, Francisco I deu permissão para sua filha partir. Já lhe bastavam os problemas criados
pelo casamento de sua primogênita, Maria Luísa, com Napoleão Bonaparte. Feito em 1810, para assegurar a paz, acabou cinco anos depois em guerra. O imperador austríaco temia as revoluções que ameaçavam o continente. O consentimento só se fez
público depois que o marquês de Marialva, representante de Portugal, declarou que a corte estava decidida a voltar para a Europa assim que o Brasil demonstrasse ter escapado das guerras de independência que abrasavam as colônias espanholas.
O casamento por procuração realizou-se no dia 13 de maio, na Igreja de Santo Agostinho, em Viena. Seguiu-se um jantar de gala, de quarenta serviços, para toda a corte imperial e mais de 2 mil convidados. Depois, a jovem empreendeu longa viagem
até chegar às costas brasileiras. Longa, pois houve atraso da escolta brasileira, retida por conta da revolução em Pernambuco: “[…] sou diariamente informada de que a esquadra portuguesa está a chegar, e todos os dias verifico que a notícia é falsa […].
Parece-me incrível que tenhamos sido impelidos a andar depressa em Viena porque a esquadra estava a nossa espera […] e estejamos agora isolados de tudo o que me é caro”, registrava uma noiva decepcionada.
Durante esse período, diplomatas ingleses em contato com Francisco I sugeriram que os planos de viagem fossem modificados. Julgavam a situação brasileira crítica. Na verdade, queriam influenciar o imperador austríaco a insistir com D. João VI para que voltasse com a corte, do Rio para Lisboa. Francisco I limitou-se a responder-lhes que sua filha tinha se tornado portuguesa por casamento. Sua obrigação, doravante, era obedecer às ordens do rei. A jovem completou afirmando que, se sua família estava correndo perigo, sua obrigação era juntar-se a ela. Os ventos do dever sopravam sobre o destino da arquiduquesa.
Os navios enviados pela Coroa portuguesa eram sujos e traziam gente demais. Sobretudo, gente malcriada. A comida servida tinha aspecto e gosto ruins: “Tenho passado por algumas vergonhas”, confessou o marquês de Marialva, encarregado de
acompanhar a arquiduquesa. Ela nunca protestou. Ao todo, foram 84 dias cruzando a Estíria, Caríntia, Veneza, Florença, Livorno, Gibraltar, com uma escala na ilha da Madeira, de onde ela trouxe macacos e papagaios. Um observador anotou sobre a jovem loura: “Mui discreta, desembaraçada e comunicável, fala, além de sua língua pátria, o francês, o inglês e italiano; alguns
conhecimentos de belas-letras e não menos de Botânica, além daquelas prendas que são próprias de uma senhora.” Uma delas era temer trovoadas.
- Texto de Mary del Priore. “A Carne e o Sangue”, Editora Rocco, 2012.
Arquiduquesa Carolina Leopoldina (Biblioteca Nacional da Áustria).
Adorei o trechinho também. Não sabia da longa viagem para o Brasil.
Adorei esse trecho do livro. Gostinho de quero mais, como tudo que é postado aqui. Só tenho a agradecer.
Obrigada! O livro realmente é ótimo.