Amores mestiços e amores escravos

 

            Em homenagem a Mandela, símbolo da luta pela igualdade e do combate ao racismo, que morreu ontem, um texto sobre as relações amorosas e familiares dos escravos nos tempos coloniais. Um tema que por muito tempo foi relegado ao esquecimento.

Há poucas referências de cronistas estrangeiros aos casamentos entre escravos. Sabe-se hoje que eles eram correntes. O livro do casal Agassiz tece, por exemplo, alguns comentários de índole moral em torno de cerimônias que eles mais consideram “irreligiosas”, tal a rispidez com que o padre tratava os nubentes.

Segundo o relato, “se estas pobres criaturas refletissem, que estranha confusão  não se faria em seu espírito! Ensinam-lhes que a união entre o homem e a mulher é um pecado, a menos que seja consagrada pelo santo sacramento do matrimônio. Vêm buscar este sacramento e ouvem um homem duro e mau resmungar palavras que eles não entendem, entremeadas de tolices e grosserias que eles entendem até demais. Aliás, com seus próprios filhos crescem crianças escravas de pele branca, que na prática, ensinam-lhes que o homem branco não respeita a lei que impõe aos negros”. Provavelmente inspirado nos negros que trabalhavam para a empresa inglesa da Mina de Morro Velho, em Minas Gerais, Richard Burton dizia que “o escravo tem no Brasil, por lei não escrita, muitos direitos de homem livre […] é legalmente casado e a castidade de sua esposa é defendida contra o senhor. Tem pouco receio de ser separado da família”.

No Dezenove, os escravos continuavam precisando da anuência de seus senhores para efetivar seus casamentos e muitas vezes, o que os segundos levavam em conta era o número de filhos que nasceriam desta união. Em propriedades grandes e médias, havia a tendência em não separar os cônjuges, por venda ou herança. Nos plantéis pequenos, proprietários eram mais sujeitos a contratempos econômicos, garantindo, em menor escala, o bem estar conjugal dos escravos. Aos jovens, fortes candidatos à fugas, dizia um senhor da região de Campinas: “É preciso casar este negro, dar-lhe um pedaço de terra para assentar a vida e tomar juízo”.

A presença da escravidão e da mestiçagem trouxe, igualmente, reflexos para as relações afetivas. No Brasil, a fidelidade do marido não apenas era considerada utópica, segundo os viajantes, mas até ridicularizada. E a manutenção de amantes, – a julgar pela Marquesa de Santos, exemplo vindo de cima – um verdadeiro segredo de Polichinelo. Tal vida não se tornava, no dizer de um destes cronistas, “uma ignomínia para um homem, em vez disso era como a ordem natural das coisas”. Famílias constituídas por um homem branco cuja companheira – mais ou menos permanente, segundo o caso – era uma escrava ou uma mestiça eram comuns, particularmente no interior do Brasil. Espantados, os preconceituosos ingleses e norte-americanos explicavam a mestiçagem biológica como resultado da falta de homens brancos. Somava-se a isto, a desproporção entre homens – em maior número – e mulheres, – poucas – estudada por demógrafos historiadores. As marcas do sofrimento ficaram na documentação e nas observações de uma viajante estrangeira. Conta-nos ela:

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“Na noite anterior eu notara uma jovem mulher branca, ou antes amarela, de grandes olhos com olheiras, de cabelos mal penteados, que andava descalça, vestida com uma saia malfeita, uma criança pela mão e outra no colo, e supusera que bem poderia ser a mulher do administrado que , no entanto, tina roupa fina, um traje decente e um verniz de letras e de ciência […] resolvi, então, satisfazer minha curiosidade, notando em seu rosto traços de profundo sofrimento.:

-Pareces triste, senhora, disse-lhe.

– Sou bem infeliz, senhora, respondeu-me ela

– Não é a mulher do administrador?

-Para minha desgraça.

-Como assim?

– Ele me trata indignamente. Aquelas mulatas, acrescentou ela, apontando-me uma, é que são as verdadeiras senhoras da fazenda. Por elas, meu marido me cobre de ultrajes.

– Por que suporta isso?

– Meu marido me força a receber essas criaturas até em minha cama; e é lá, debaixo dos meus olhos, que lhes dá suas carícias.

– É horrível!

– Quando me recuso a isso, ele me bate e suas amantes me insultam.

-Como continua com ele? Abandone-o.

Ela olhou-me com profundo espanto, replicando

[…] – Isso é bom para as francesas que sabem ganhar seu pão; mas nós, a quem não se ensinou nada, somos obrigadas a ser como criadas de nossos maridos”.

Na cultura popular, as modinhas ensinavam as mulheres a desconfiar de seus maridos. O concubinato corrente entre homens brancos e mulheres afro-descendentes, provocou uma reação: mulheres brancas deviam casar com homens brancos. Embora já houvesse muitas uniões entre brancas e mulatos, como descreveu Freyre para o Nordeste, nas capitais todo o cuidado era pouco. Tão pouco, que a Folhinha Laemmertz de 1871 admoestava: “com a lei do Ventre Livre algumas moças que não querem ficar para tias, casam-se com negros”. Ao fundo, a imagem de um casal misto, ela, uma pintura, ele, caricaturizado. Como veremos, mais adiante, as relações e os amores entre brancos e negros, invadiram as representações literárias.

No litoral, procuravam-se genros nascidos no Velho Mundo. O “mendigo de mais alto nascimento era preferido aos mais ricos nativos”. Mas nas províncias do interior não havia tanta fartura de brancos e, na conclusão de Burton, “o mulatismo tornou-se um mal necessário”. Maria Graham repete as mesmas palavras: os portugueses “preferem dar suas filhas e fortuna ao mais humilde caixeiro de nascimento europeu do que aos mais ricos e meritórios brasileiros”, leiam-se, mestiços. Ela acreditava que “os portugueses europeus ficavam extremamente ansiosos para evitar o casamento com os naturais do Brasil”, demonstrando dessa forma, já estarem “convencidos das prodigiosas dificuldades, se não malefícios que fizeram a si próprios com a importação de africanos”.

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Mas a solidão em que viviam muitos brancos, isolados num deserto e não tendo qualquer restrição das opiniões da sociedade”, possibilitava, no entender da professora inglesa,  que eles se “acomodassem”com as mulheres a seu alcance. Escapa-lhe o potencial afetivo de muitas destas relações. Completava-se, assim, o binômio que induzia “muitos no país a prescindirem de uma esposa”, neste caso, de uma moça branca para casar legalmente. Desse “desregramento”nem os ingleses escapavam, observa um norte-americano, mencionando o caso de certo Mister Fox, comerciante solteiro que já sexagenário desfrutava, em sua casa, da companhia de uma senhora negra e viçosa, de pouco mais de trinta e cinco anos, que atendia à mesa, desincumbindo-se, também, de outras tarefas domésticas.

Apesar de consideradas indignas do papel de esposas, laços de convívio diário com escravas acabavam por tornar-se “tão respeitados como em qualquer país da Europa”. Assim elas assumiam, sem maiores obstáculos, a honrosa posição de esposas. No caso em que tais relações se prolongassem, adentrando a velhice do parceiro, este não se decidindo por providenciar um casamento com uma mulher branca, acabava por fazer de seus filhos mulatos os únicos herdeiros de seus bens.  Durante uma visita a Bertioga, o reverendo Walsh defrontou-se com “uma negra”, que, diz ele, “veio e sentou-se para olhar para nós. Ela era a companheira de nosso pequeno anfitrião e mãe de algumas crianças mulatas que possuíam toda a propriedade de seus pais”.

Estudando a vida privada na Província de São Paulo, Robert Sleenes esmiuçou documentos em que estas afirmações ganham carne  e sangue. Filhos mulatos nascidos destas uniões herdam bens, escravos e negócios, dando origem a uma pequena camada média, mestiça, como já observara, à mesma época, o reverendo Walsh. O fenômeno não era comum, havendo o pai que alforriar seus filhos que, por sua vez, muitas vezes, tinham seus filhos nas mesmas condições: com escravas. As dificuldades de mobilidade social foram grandes até meados do século, mas não faltavam senhores que, literalmente apaixonados, ameaçavam a vida de casal de escravos. Um exemplo, em São Paulo? Um senhor que perseguia violentamente Romana, sua escrava, dizendo a seu marido que “o havia de matar porque precisa da crioula para sua manceba”.  Ou, Vassouras no Rio de Janeiro, em que uma esposa traída apresenta ao juiz uma carta de seu marido à amante, uma ex-mucama: “Marcelina, você como tem passado, meu bem? Estou com muitas saudades de Você e ainda não fui dar-lhe um abraço porque estou na roça feitorando outra vez […]”. E se despede: “Adeus, minha negra, recebe um abraço muito e muito saudoso, e até breve. O frio já está apertando, e faz-me lembrar das noites da barraca com uma saudade que me põe fora de mim; está bom, não quero dizer mais nada por hoje, se começo a me lembrar de certas coisas, em vez desta carta vou eu mesmo, e hoje não posso sair. Outra vez adeus e até lá”.  Na corte, Marcelina se deixava fotografar com acessórios considerados de fino trato: leques e lindo vestido de tafetá pregueado com o laço à marrequinha.

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Não é este o caso de Marcelina, mas, na maioria dos exemplos que extraímos da documentação, tem-se a impressão de que era mais fácil, se não econômico, para o homem branco aproveitar-se das mulheres que não podiam exigir dele compromissos formais, mas lhe ofereciam os mesmos serviços que uma esposa branca e legalmente casada. Segundo observação de um viajante estrangeiro, até os homens acabavam por sentir “uma estranha aversão pelo casamento”, passando a não gostar de se casar para sempre e, na medida em que “a humana lei latina facilita o reconhecimento dos filhos ilegítimos”, são eliminados os atrativos que restam ao matrimônio. Ficavam assim justificadas em favor do homem, segundo Tânia Quintaneiro, as ligações à margem da legislação com negras e mestiças e a desproteção a muitos filhos que apesar da “humana lei latina”, nem sempre eram legalmente reconhecidos. Estrangeiros também teriam observado que os homens das melhores classes na vila de Crato, por exemplo, – de juízes a comerciantes -, raramente viviam com as esposas: “Poucos anos depois do casamento, separam-se delas, despedem-nas de casa e as substituem por mulheres mais moças que estão prontas para suprir-lhes o lugar sem se prenderem pelos vínculos do matrimônio. Sustentam, assim, duas casas”, conta-nos Gardner. – Mary del Priore

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Casamento de escravos e negras forras fazendo seus negócios: Debret.

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