Por Natania Nogueira.
No final de semana, participei de um encontro que reunia cartunistas, pesquisadores e pessoas que se interessam pela arte das histórias em quadrinhos. Porque, sim, quadrinhos são uma arte, assim como são uma forma de comunicação, um entretenimento e um produto da moderna indústria cultural, dentre outras coisas. Em meio a relatos de experiências, a fala proferida por uma jovem cartunista levou-me a pensar em uma coisa que não tem nada a ver com o que estava sendo tratado ali.
Ela falava da satisfação de poder produzir uma história em quadrinhos, em que pode expressar seus sentimentos, angústias, enfim, suas experiências pessoais. Um exercício de autoconhecimento, de colocar para fora particularidades que guardamos para nós mesmos, seja por vergonha, seja pela pressão social, especialmente sobre as mulheres, que se faz presente nos tabus que regem a nossa vida desde a infância.
E, enquanto ela falava de forma entusiasmada, fiquei pensando sobre a importância do registro da memória. De como deixamos uma boa parte das nossas vidas no esquecimento. De como, muitas vezes, achamos que o registro das nossas experiências não é importante. Os memorialistas, creio eu, romperam com vários tabus quando resolveram colocar no papel suas experiências, buscando manter viva sua memória e deixando-a como um legado para sua família, para sua comunidade.
De repente, pude vislumbrar a proporção, o alcance de tal ação. Memórias, aos contrário de biografias, possuem um componente subjetivo que nos transporta para a mente do memorialista. Nós passamos a ver o mundo com seus olhos. A análise psicossocial da realidade pode ser mais abrangente quando podemos ouvir a voz do sujeito histórico.
Gostaria que houvesse mais memorialistas. Que mais pessoas se disponibilizassem a compartilhar, a narrar suas experiências. Nessas horas, penso em dois nomes: Pedro Nava e Helena Morley. Foram os dois primeiros autores a despertarem meu interesse pelos livros de memória como objeto de estudo. Helena Morley mais ainda, pois suas memórias foram escritas sem o objetivo de se tornarem públicas, possuindo desta forma, talvez, menos “filtros”.
Permitam-me ser mais clara. Quando nos propomos a escrever nossas memórias para que elas sejam lidas por todos, o fazemos com uma intenção. Nós deixamos de colocar no papel alguns detalhes da nossa vida ou da vida de pessoas que conhecemos justamente porque sabemos que elas serão lidas. Fazemos conscientemente uma “edição” daquilo que queremos que as pessoas saibam sobre nós. No caso de Morley, que faz relatos diários de uma pequena das suas experiência de quando ainda menina, acredito que esses “filtros sociais” são menores.
Se formos analisar bem, temos memorialistas modernos sempre muito ativos na internet. Os blogs surgiram como uma espécie de diários pessoas, onde fatos são registrados, documentos como fotos são disponibilizados. Mas, apesar de todo o alcance que o meio virtual possui, sinto falta daquela narrativa que nasce do desejo de se deixar um legado, de preservar a memória, de contar uma história.
É um exercício fantástico que pretendo fazer um dia, quem sabe num futuro próximo: buscar recordações, passagens da minha vida que foram relegadas ao esquecimento. Colocar no papel minhas experiências de vida, ou pelo menos aquelas das quais me recordo. Como a memória é seletiva, imagino que muitas passagens vão ficar de fora da minha narrativa, mas acho que isso não diminuiria a importância da ação em si. Fica o desafio: contribuir com a construção da nossa identidade pessoal e com a identidade da nossa comunidade a partir da nossa própria história. Quem aceita?
SUGESTÃO DE LEITURA:
MOLEY, Helena. Minha vida de Menina. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
Interessante!