Mary del Priore fala sobre seu livro “A Carne e o Sangue” (Editora Rocco), destacando uma das personagens principais do mais famoso triângulo amoroso de nossa história, a Imperatriz Leopoldina. “O intenso sentimento de infelicidade que marcou sua curta vida é de uma profunda atualidade. Todas as mulheres que viveram a dor de uma ruptura, de uma rejeição ou de um abandono hão de se identificar à Leopoldina”, diz a historiadora. Saiba mais sobre a esposa de nosso primeiro imperador, que foi forçada a conviver com a presença da amante do marido, a Marquesa de Santos.
– Qual a importância da vasta correspondência trocada ao longo da vida da princesa Leopoldina?
A correspondência de Leopoldina, pelo menos a publicada em português, graças aos esforços de alguns historiadores não é vasta. Aliás, é preciso definir melhor o que seja isso: corresponder-se significa estabelecer uma reciprocidade. Com exceção do príncipe Gastão de Orleans, o conde d´Eu -, casado com a princesa Isabel, que se correspondia com seu pai, o duque de Nemours -, não temos na família imperial brasileira, verdadeira correspondência. Leopoldina escrevia ao pai e à irmã. Mas as respostas eram pouquíssimas. Além disso, eram cartas curtas que mais pediam, do que davam notícias. A falta delas, inclusive, é motivo de queixa da jovem imperatriz que lamentava ter sido abandonada pela família.Diante da escassez de material resolvi fazer um livro diferente. Não uma biografia sobre cada um dos personagens. Mas, entrelaçar suas histórias. Isso significava perguntar: o que acontecia com Leopoldina, quando D. Pedro estava com Domitila? Ou como se comportavam as duas mulheres quando se cruzavam? Ou, o que dizia D. Pedro quando sumia, à noite? E como a opinião pública – que já existia –reagia a tudo isso? Para que isso desse certo foi preciso colocar os fatos e os documentos sob uma lupa de aumento. E, mais, importante, perceber como as pessoas que cercavam a família imperial e que assistiam ao triângulo amoroso, reagiam e comentavam o comportamento dos três envolvidos. Desse ponto de vista, a sessão de manuscritos da Biblioteca Nacional foi fundamental. Ela guarda a imensa correspondência diplomática em francês, que dá conta do progressivo apagamento da imperatriz, diante da evidência e da violência do caso amoroso. Como faço em todos os meus livros, publico ao final a extensa lista dos documentos utilizados, facilitando a vida de outros pesquisadores que por ventura queiram aprofundar o tema.
– Qual foi, afinal, o papel de Leopoldina na Independência? Ela era de fato contrária à separação do Brasil e Portugal como demonstra em suas cartas a princípio?
Personagens históricos são complexos. E não é possível fazer afirmações taxativas sobre os mesmos. Afinal, ninguém estava lá para entrevistá-los e, mesmo que estivéssemos, a entrevista estaria perpassada de subjetivismos. Podemos, sim, nos aproximar, graças aos documentos históricos, de formas de pensar e agir que foram as de nossos antepassados. Na correspondência publicada, Leopoldina mostra-se aferrada ao Antigo Regime e mais do que isso, apavorada diante da possibilidade de uma revolução sangrenta que lhe cortasse a cabeça. Ela não esconde esse temor nas cartas ao pai a quem revela o início do seu isolamento, uma vez que a família imperial austríaca representava o que havia de mais conservador e tradicional, numa época em que revoluções liberais varriam a Europa. E isso era compreensível, pois havia uma grande efervescência na cidade do Rio, com choques entre portugueses e brasileiros: os primeiros querendo a restauração do comércio e do controle sobre o país e os segundos, a liberdade e autonomia: a lembrança de Pernambuco, 1817, estava bem ali! Na documentação, percebe-se também o pavor da princesa pelo “povo” e suas reações intempestivas. Ela chamava a população carioca de “maldita canalha”. Seu comportamento começa a mudar ao final de 1821, quando Leopoldina começa a animar D. Pedro, embora continuasse a escrever ao pai lamentando a situação e prevendo um final “sujo” – palavra sua – para os fatos. Minha impressão é que ela não quis arriscar a herança ou a coroa dos filhos, voltando para a Europa. Enquanto princesa de sangue, ela sabia da importância de um reino. Ela se aproximou de Bonifácio, mas os documentos não revelam o quanto, nem a que ponto ele foi responsável por sua mudança de atitude. Em minha opinião, são os fatos, mais do que as pessoas, que e levam a se posicionar em favor da independência. Leopoldina temia uma guerra civil. Reage em função disso… São suas as cartas a D. Pedro sobre os fatos que se aceleravam: tropas e esquadras vindas de Portugal, inquietação nas cidades. Nelas, nota-se que Bonifácio estava por perto. Quando ela pede ao marido que não fique fora por mais de um mês, acrescenta “José Bonifácio lhe diria o mesmo”. Mas de quem são essas linhas? Da esposa saudosa e carente ou da princesa política? Das duas? Enquanto D. Pedro gritava “Independência ou morte” em São Paulo, Leopoldina escrevia ao pai assinando-se sua “filha e vassala a mais fiel”. Acusando-o de aderir “a novidades”. O seu sofrimento – pois tinha perdido o primeiro filho, não recebia resposta do marido já nos braços de Domitila, estava isolada no palácio – acentuavam a fragilidade que se vê nas cartas publicadas: “o futuro é negro”, lamentava. Se houver outras cartas em que ela se mostre uma estratégia ou executiva do movimento independentista, não as conheço.
– Como foi a educação de Leopoldina? Ela foi preparada para ser a mulher de alguém poderoso de que forma?
Sua educação foi aquela de uma princesa europeia da época: a mais completa possível. Carlota Joaquina, sua sogra, também a recebeu. Ela era extremamente religiosa: orava e meditava regularmente. Leopoldina acreditava ser amável por suas qualidades morais. Era um símbolo de beleza espiritual, não física. Seus biógrafos dizem que ela sempre sonhou em conhecer a América. Conhecia línguas estrangeiras – francês, inglês, italiano, além de alemão – tinha “alguns conhecimentos de Belas Letras e não menos de Botânica, além das prendas que são próprias a uma senhora”, segundo um observador de época. Gostava de música, de caçar e praticar equitação. Ela tinha doze irmãos – pois o pai casou-se quatro vezes. Na qualidade de princesa de uma das maiores casas reais da Europa, era, sobretudo, um peão no jogo das alianças entre potências. Ela apaixonou-se por D. Pedro. As cartas à sua irmã confirmam a sinceridade do sentimento. Mas, rapidamente, ele mostrou-se indiferente e ríspido com ela. À época da independência, ela já tinha muitas queixas do marido. O contraste entre a educação que cada um recebeu era evidente aos olhos dos observadores estrangeiros. O que, para eles, justificava a conduta do casal. Ela isolada. Ele, entre mulheres.
– O que mais lhe chamou atenção nesta pesquisa a respeito dela?
A forma com a qual lidou com o intenso sentimento de infelicidade que marcou sua curta vida. Ele é de uma profunda atualidade. Todas as mulheres que viveram a dor de uma ruptura, de uma rejeição ou de um abandono hão de se identificar à Leopoldina. Encontrei cartas inéditas dela a um afilhado em que a imperatriz descreve seus dias mergulhados na mais profunda depressão. Nem as alegrias trazidas pelos filhos foram capazes de cauterizar sua desventura. Ela teve uma vida de miséria moral e psicológica como poucas vezes encontramos nos documentos históricos. Sua tristeza e suas lágrimas estão ali registradas. Isso me impressionou profundamente.
– Leopoldina parecia uma mulher resignada à sua condição de “esposa de monarca”?
Mas era essa a sua condição. Nenhuma outra. Esposas eram, antes de tudo, ventres para dar príncipes e herdeiros ao reino ou à nação. Mulheres como Carlota Joaquina, Catarina da Rússia ou mesmo a avó de Leopoldina, Maria Teresa Habsburgo, capazes de ter projetos e agir de acordo com pautas políticas foram exceção. Não regra. E mesmo para essas, manter a aparência era fundamental. Carlota Joaquina não escrevia a D. João chamando-o de “meu amor”?!
– Como ela descreve o Brasil para seus parentes? A imagem que ela faz do país muda com o passar do tempo?
No início, Leopoldina elogiava os monarcas portugueses, mas sua relação afetiva seria com D. João VI, o sogro que a protegia dos vexames que lhe impunha D. Pedro. Sobre a sogra, fazia críticas a sua vida livre. Essa lhe parecia amoral, bem como a educação que dava às filhas menores. Segundo Leopoldina, as cunhadas eram mais conhecedoras de sexo do que mulheres maduras e casadas. Católica como era, chocava-se com isso. O retorno dos sogros a Portugal foi para ela uma grande perda. Ela desconhecia que morava numa cidade “africanizada”, pois o marido a impedia de ir ao centro. Ficava em São Cristóvão e seus arredores. Pouca saia. Os cientistas que traz consigo mais estão a serviço da Corte austríaca do que dela. Ela não menciona nenhuma “missão civilizatória” no Brasil, em suas cartas, nem poderia exercê-la, isolada como viveu. Apenas menciona o envio de curiosidades naturais ao pai (animais e plantas), pois ele tinha um jardim zoológico contíguo ao palácio. Era a época das grandes viagens naturalistas pelo mundo afora. Todas as cortes européias enviavam seus botânicos e zoólogos em busca de descobertas e raridades. E também de produtos que pudessem ser explorados e comercializados.
– Como sua aparência e a infidelidade do marido realmente a afetaram? Houve em algum momento revolta ou sempre resignação?
Ambos a afetaram muito. As cartas enviadas à irmã revelam o desespero da mulher abandonada. E depois traída. Ela acreditava que podia ser feliz e seu casamento ruiu como um castelo de cartas, sem que ela tenha feito nada isso. Quando passou a ser obrigada pelo marido a conviver com a “favorita” e com a filha bastarda de Domitila, ela sofreu brutalmente. D. Pedro transformou Domitila em primeira-dama do Paço, conferindo-lhe o direito acompanhar o casal imperial a todos os lugares, sendo-lhe destinado um lugar de honra logo após os imperadores em qualquer situação pública. Viajaram juntos para a Bahia. Os amantes jantavam juntos e a imperatriz, ficava no camarote do barco que os levou. A Corte reagiu. O corpo diplomático, também. Mas não havia nada que constrangesse D. Pedro. Houve um momento em que Leopoldina pensou em abandonar o marido e em voltar para Áustria. Ameaçou deixar a família e partir sem nada. A cena se deu quando da morte do pai de Domitila, época em que D. Pedro esqueceu os compromissos conjugais e enfiou-se na casa da favorita. Depois, ele pediu-lhe perdão e já foi o início do fim: Leopoldina grávida, fraca e deprimida, começava a não querer mais viver.
Leopoldina e os filhos; “A Carne e o Sangue”, de Mary del Priore.
Este livro, da Gloria Kaiser, não é uma pesquisa histórica. É um romance que aborda alguns fatos da história da imperatriz Leopoldina. Uma obra trabalhada com o imaginário, portanto, uma ficção.
Na entrevista publicada, Mary del Priore fala sobre seu livro “A Carne e o Sangue” (Editora Rocco).
Sedria interessante, ja que estão falando dela, comentar o diário fake que Gloria Kayser fabricou e tentou vender como real. Teve historiador famoso que caiu e citou.