ÁUREA NARDELLI: MEMÓRIAS DE UMA NORMALISTA

Por Natania Nogueira.

Falar sobre a história do magistério no Brasil é um desafio para os pesquisadores que se dedicam ao estudo da História da Educação. Maior ainda é a dificuldade quando nos propomos a escrever a história das mulheres no magistério. As fontes documentais, sejam elas produzidas por instituições públicas ou privadas, estão muitas vezes fora do acesso do pesquisador, seja pela falta de arquivos organizados, seja algumas vezes pelo desinteresse da família em preservar cartas, diários, fotos e outros registros pessoais, após a morte daqueles que os produziram, homens ou mulheres.

Para o pesquisador, especialmente aquele que se dedica à micro história ou à história local – buscar fontes que possam preencher esse vazio, sendo as fontes impressas, como periódicos e livros de memória ou biografias – produtos de uma época, cheios de simbolismos e significados, de visões de mundo e preconceitos -, podem oferecer informações precisas que permitem responder e levantar mais questões acerca do passado.

Nesse sentido, a memorialista Áurea Nardelli nos deixou uma valiosa contribuição, permitindo adentrar ao espaço privado, à intimidade da família, e ter acesso a informações que quebram, de certa forma, o rigor e a aridez dos documentos e relatos aficiais. Nascida em Mar de Espanha, no início do século XX, a professora Áurea Nardelli relata em seus dois livros de memória passagens de sua vida. Sua experiência no magistério ocupa um espaço significativo nos dois livros, juntamente com suas impressões sobre as relações sociais e políticas que se desenvolviam ao seu redor.  Como professora, Áurea atuou em frentes pioneiras de ensino. Como mulher, adotou uma postura independente e ousada em contextos onde as fronteiras de gênero eram bem definidas e aparentemente intransponíveis.

A vida da família Nardelli foi marcada por dificuldades financeiras. O pai teve muitas profissões como viajante comercial, relojoeiro, gerente de banco e atacadista de cereais. Apesar da origem humilde, Vicente Nardelli procurou oferecer aos quatorze filhos a oportunidade de se instruir e seguir uma profissão.  O ingresso de Áurea e suas irmãs no magistério ia ao encontro dos planos do pai. Através do magistério, as mulheres puderam ter acesso a uma profissão que lhes oferecia, não apenas emancipação financeira, mas, sobretudo, distinção social. O baixo salário era compensado pelo reconhecimento social.

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Em busca de estabilidade as quatro irmãs, Hilda, Alba, Áurea e Eunice, mudaram-se para Juiz de Fora, aproximadamente em 1931. Foram estudar no Colégio Stella Matutina, dirigido pelas Irmãs Missionárias Servas do Espírito Santo. Quando as quatro irmãs se matricularam no Colégio Stella Matutina, elas já estavam no último ano de estudos. Segundo a memorialista, a qualidade do ensino que tiveram no Grupo Escolar foi excelente, permitindo uma rápida adaptação na nova escola e garantindo-lhes ótimas notas ao final do curso. Assim que se formaram, todas receberam convites para trabalhar como professoras, dando, então, início à sua carreira no magistério.

Áurea foi uma mulher decidida, de gênio forte e rebelde.  Não gostava de ser pressionada por ninguém. Terminou o noivado por não se sentir preparada para casar. E nunca realmente esteve. Ao contrário das moças da sua época, namorava pelo prazer de namorar, sem ter planos para um relacionamento futuro, o que causou a revolta de alguns de seus ex-namorados, intrigados com a jovem que não sonhava em se casar.

Áurea não é o arquétipo da normalista que se sacrifica e transforma o trabalho na escola em uma extensão do lar. A dedicação dela vinha de um idealismo muito mais profundo, que pode ser percebido pelas suas opções profissionais. Fez um curso superior em ensino rural, com objetivo não apenas de lecionar, mas também de contribuir com a formação de professores aptos a atender a clientela residente nas fazendas e sítios da região. Sua preocupação era, acima de tudo, com a qualidade do ensino e do trabalho dos professores. Ela promoveu mudanças, colocou uma professora por turma e procurou dar qualidade ao ensino. Recebeu uma oferta para trabalhar em uma escola, em regime de internato, para meninos carentes da zona rural, na localidade de Florestal. Gostou, mas não aceitou, resolvendo voltar para a direção do Grupo Antônio Carlos, cargo que exercia naquela ocasião.

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Foi convidada por Helena Antipoff para trabalhar no núcleo educacional da Fazenda do Rosário, com o objetivo de reformar o ensino rural. O trabalho com Antipoff era um desafio que agradava Áurea e ia ao encontro de seus interesses profissionais. Além de alunos da zona rural, o núcleo educacional da Fazenda do Rosário também atendia alunos com necessidades especiais e promovia a formação de professores rurais.

Quando voltou do Rosário, o Mobral esta sendo instalado. Foi então convidada para organizar algumas classes que seriam implantadas na Vila Furtado de Menezes, em Juiz de Fora. A dificuldade em ensinar para adultos, a evasão e a falta de material didático adequado fizeram com que Áurea, nos poucos meses que se dedicou ao Mobral, elaborasse um material didático exclusivo, na forma de cartilhas, que foi utilizado na alfabetização de adultos. Tratava-se de uma coleção de três livros. Antes de partir, a educadora pôde constatar a eficiência de seu método, a partir do depoimento dos próprios alunos.

Como diretora, lutou pelos direitos de seus professores, conquistando para muitos a tão sonhada efetivação. Mesmo exercendo um cargo de confiança, Áurea liderou movimentos reivindicatórios, como greves, e enfrentou a pressão do governo estadual sem recuar. Não tinha muita tolerância com “conformistas” e sabia aproveitar muito bem as oportunidades que lhe surgiam. Também não tinha medo dos políticos e não tolerava o clientelismo, prática ainda muito comum no interior de Minas Gerais. Narra, em seu segundo livro, um episódio onde foi confrontada por um deputado, que exigia vaga para uma protegida.

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Áurea Nardelli defendia seu direito a manifestar opinião política e o fazia em qualquer local. Não aceitava censura alguma. Chegou até a sofrer ameaças do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), durante a Ditadura Militar, mas nunca recuou e nem sofreu qualquer represália.

Ao estudarmos a vida de mulhes simples, como Áurea Nardelli, estamos não apenas constuindo a história do magistério feminino, mas também nos aprofundando nas relações de gênero e de poder, narradas por uma mulher numa sociedade onde a história foi muito tempo escrita pelos homens. A menina, a normalista, a educadora e a diretora. Sua visão do mundo e suas opções de vida mostram que as mulheres não possuíam atitudes homogêneas, quebrando mitos como o do valor do casamento para a mulher do início do século XX e seu pretenso desinteresse pela política. Áurea certamente não era um exceção. Ela representa as muitas mulheres, professoras, mães e filhas que interagiram em várias esferas sociais, que possuíam e expressavam suas opiniões e não se curvavam a todos os tabus sociais.

Áurea quebra o silêncio por todas essas mulheres, que não deixaram suas memórias escritas, que não podem hoje contribuir com seus depoimentos, mas que marcaram as vidas de muitas outras mulheres e homens, também. Ela e muitas outras educadoras cedem seus nomes a escolas, mas suas memórias muitas vezes estão fragmentadas, dispersas e esquecidas.

As memória podem estar cercadas de simbolismos, podem passar por filtros morais mas, ainda assim, elas pemitem ao pesquisador contemplar não apenas a visão de um protagonista da história, mas também penetrar em todo um discurso socialmente construído. Desvendar a história das mulheres na educação é por assim dizer, explorar todo um universo desconhecido, onde muitos e tabus podem sucumbir à voz da memória, que quebra o silêncio no qual, por muitos anos, as mulheres foram relegadas.

Áurea Nardelli

Áurea Nardelli: magistério e independência feminina.

8 Comentários

  1. Cristina
  2. Geraldo Guedes
  3. Geraldo Guedes
  4. Maria de Fátima Pio Cassemiro
  5. Alexandre
  6. Lidia Maria Monteiro Rodrigues Da Silva
  7. Saulo Nardelli

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