A busca pelo amor impossível

 

No final do século XI, trovadores introduzem novas relações entre homens e mulheres. Para melhor visualizar a cena, lembremos das iluminuras medievais: em vergéis floridos, casais de enamorados são retratados com delicadeza. Elas com grandes coifas e cintura marcada por vestidos elegantes que desnudam, levemente, colo e ombros. Eles, trajados com curtas capas acinturadas de largas pregas e calças colantes que sublinham a estrutura musculosa do corpo. A linguagem dos olhares e das mãos diz tudo: o jardim é o lugar de passeios galantes que avivam a espera e retardam os carinhos. O fin amor, ou amor puro, é aí cantado em versos. Versos que celebram a continência sexual conservando, contudo, uma coloração carnal que agrada à aristocracia. Nesta época, a aventura do amor cortes erigiu como tema a exaltação carnal e espiritual nas relações amorosas entre homens e mulheres. Exaltação mais idealizada do que prática, mais descrita do que vivenciada. Emprestada a sociedades vizinhas, notadamente, a árabe, tal aventura fervilha de imagens sobre a submissão do amante à sua dama, valorizando, ao mesmo tempo, qualidades viris como a coragem, a lealdade e a generosidade, encarnadas no cavaleiro. Associada aos ideais da cavalaria, a erótica trovadoresca prometia aos que servissem na Corte, a alegria de serem distinguidos com um amor nobre e desinteressado. Era o amor cortês e dele deriva a palavra cortesia.

Porta-vozes desta cortesia, os trovadores escrevem poesias e as colocam em música. Cada um escolhe a esposa de um senhor a quem consagra seus versos. A dama era posta num pedestal, enquanto o homem se esforçava por ganhar seus favores. Tratava-se de uma situação nova, pois, até então, um homem que dirigisse a uma mulher casada uma canção de amor, era punido com a morte. Na canção, todavia, a dama não era mais o objeto de que podia dispor à vontade, seu senhor e mestre. Era preciso merecê-la. Invertem-se os papéis. O homem se vê menos conquistador do que conquistado. E a mulher, menos presa do que recompensa. O amor, por sua vez, é tão mais ardente quanto impossível.

O sentimento amoroso, essência de todas as virtudes, reproduzia as condições sociais então existentes. Ele traduzia um “serviço” de tipo feudal, mas, também uma série de provas que consistiam num método de purificação do desejo. Para manifestar o valor de seu amor e merecer a eleita, o cavaleiro, deitado no mesmo leito que sua dama, separado dela por uma espada ou uma ovelha, símbolo da pureza, observava a estrita castidade. Todos os esforços de conquista terminavam, quando muito, num casto beijo. Na intimidade amorosa, assim como em sociedade, o perfeito amante não era mais do que o fiel servidor de sua dama. Seus deveres consistiam em lhe satisfazer as vontades, em lhe agradar, em não amar mais ninguém, em ser discreto. Longe de ser mórbida por impor aos amantes a graça de contemplar o corpo nu da dama ou o asag, onde tudo era permitido menos o ato sexual, a ética dos trovadores foi um fenômeno estritamente moralizador e incrivelmente regrado. Em matéria amorosa foi a grande invenção do século XII. Os temas do amor cortês, ao mesmo tempo carnais e espiritualistas, vão influenciar as teorias literárias do amor no Ocidente.

Vejamos o exemplo do amor proibido de Tristão e Isolda, personagens criados por Eilhart von Oberg. Depois da ingestão de certo filtro mágico do amor, o autor alemão condena os amantes à “acre alegria e angústia sem fim” da paixão. Para vivê-la, Isolda deixa seu marido, o rei Marcos e vai se esconder na floresta, em estado de castidade. Só que roída pela vergonha e o remorso, vê seu amor afundar em desastre e sofrimento. Era um triste destino, o destes enamorados. A história do casal aparece como o símbolo do amor, ao mesmo tempo perfeito, mas, sobretudo, impossível.

Na Idade Média, contudo, ela era apenas um tema literário com as marcas de sua época. Ao tratar do tema, o trovador costumava anunciar a promessa de uma felicidade futura. Nele, o amor é sempre “amor de longe”. Ele é impossível. A ausência, a falta, a lacuna está no coração desta poesia. O desejo de cantar o amor distante é inseparável do desejo e da obrigação de amar. Assim a joi, a alegria do trovador, é um enigma, pois ela visa o encontro impossível do amante e da amada. Visa o ponto extremo e último da fronteira amorosa. A tensão entre estes dois contrários, o da alegria extática e o do erotismo melancólico, foi o berço da poesia amorosa medieval.

Alguns historiadores tentaram decifrar como os homens que os antecederam compreendiam estes heróis. Uma das primeiras tentativas foi feita em 1938, pelo suíço Denis de Rougemont num clássico sobre o assunto. Chama-se O Amor e o Ocidente. A obra revisita o mito da paixão a partir de seu nascimento. Ele mostra, a partir do relato de Tristão e Isolda, que este sentimento arrebatador é sinônimo de amor recíproco, porém, infeliz. A paixão é equivalente a sofrimento. Os amantes têm contra si diversos e ásperos obstáculos. E na verdade, o que excita sua obsessão passional é, exatamente, a oposição. Sem obstáculos, não haveria paixão. Quando os amantes se casam e vão viver felizes para sempre, o romance acaba. A trama romanesca é precisamente a dificuldade. O casamento – afirma o autor – é monótono, porque nele não há qualquer obstáculo a realização erótica da paixão. O desejo de envolvimento total dos amantes só se realiza inteiramente na morte. 

Assim será o encontro final de Tristão e Isolda ou o de Romeu e Julieta. Na verdade, questiona Rougemont, o que os amantes desejam é o seu próprio desejo. Estão apaixonados, não um pelo outro, por suas qualidades e defeitos intrínsecos. Mas por sua própria paixão. Dentro desta lógica, jamais se poderia conceber um Tristão que se casasse com uma Isolda. Esta, segundo Rougemont, é a herança que a poesia trovadoresca deixará ao Ocidente cristão: a busca do amor impossível.

Texto de Mary del Priore. (Baseado em “História do Amor no Brasil”).

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Codex Manesse: Grande Livro de Canções manuscritas de Heidelberg (séc. XIII).

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