Profundamente triste. É assim que me sinto enquanto escrevo esse texto sobre o terrível caso de estupro de quatro adolescentes no Piauí. Não consigo parar de pensar na dor, no desespero e na revolta que essas meninas sentiram. Tiveram seus corpos violados e mutilados, com uma crueldade estarrecedora. Uma delas morreu. As que sobreviveram terão que aprender a suportar as sequelas físicas e psicológicas do ocorrido. E suas famílias, como estarão? A situação fica mais tenebrosa quando pensamos nos agressores: um homem de 40 anos e quatro garotos com idades entre 13 e 17 anos! Meninos pobres, que largaram a escola, envolvidos com drogas e com várias passagens pela polícia.
Infelizmente, vivemos tempos em que quando alguém procura refletir sobre um fato como esse, a pessoa é duramente criticada. “Você está defendendo bandido? E se fosse com sua filha/irmã” ou o já clássico, “Está com pena, leva para casa!”. Com isso, a sociedade evita olhar para os seus aspectos mais dolorosos e obscuros, em busca das reais causas dos problemas. No nosso dia a dia, tudo se resolve pela força, pode ser uma discussão de trânsito ou uma rivalidade no futebol, ninguém tolera ser contrariado, ninguém suporta as diferenças. O Estado faz uso de métodos violentos para reprimir o cidadão, mesmo quando este está dentro da lei.
Quando nos debruçamos sobre a História do Brasil percebemos que nossa sociedade foi forjada na violência. Começando pela colonização, baseada na destruição de outras culturas e no trabalho escravo. E também nas relações sociais, em que a hierarquia e o poder davam as cartas. Nos tempos coloniais, eram comuns as desavenças que acabavam em morte. M. De La Flotte, um viajante francês que esteve no Rio de Janeiro em 1757, relata que os colonos só saíam às ruas, munidos de adagas. “Os assassinatos são frequentes e permanecem quase sempre impunes”.
As agressões contra mulheres eram corriqueiras, como nos conta Mary del Priore: “Afagos e deleites não dão margem a ilusões pois as tensões e conflitos estão bem presentes. Temperadas por violência real ou simbólica, as relações eram vincadas por maus tratos de todo o tipo, como se veem nos processos de divórcio e na obsessão das mulheres por acalmar maridos e amantes por meio de magia. Não faltaram mulheres assassinadas por mera suspeita de adultério ou por promessas de casamento não cumpridas”.
O sistema patriarcal tratava de rebaixar a mulher ao papel de propriedade do marido ou do pai. Nesse contexto machista, os estupros, principalmente das escravas, índias e de mulheres pobres, sempre fizeram parte de nossa realidade. Pagamos até hoje um preço alto pelo nosso passado. Muitos homens ainda enxergam os corpos femininos como objetos, que podem ser violados sem remorso. Crianças e adolescentes não escaparam dessa história cruel: os grumetes dos navios já sofriam com abusos físicos e sexuais, trabalho extenuante e alimentação precária. As crianças escravas não tinham sorte melhor.
E hoje? Assistimos impotentes a casos de estupro de nossas crianças e adolescentes; vemos jovens sem perspectiva, viciados em drogas lícitas e ilícitas, reproduzindo a violência da sociedade. As famílias estão perdidas, não sabem como proteger os seus filhos, assim como professores e educadores. Faltam políticas públicas inclusivas, falta noção de cidadania, falta empatia com outros seres humanos. Meninos e meninas agem como frios assassinos.
Muitos acreditam que o encarceramento dos jovens é a solução. Todo crime que ocorre envolvendo menores agressores se torna justificativa para a redução da maioridade penal. Entretanto, sabemos que essa discussão é apenas mais uma forma de nos enganarmos, de acreditar que podemos manter o mal longe de nós e das pessoas próximas. O sistema prisional brasileiro está falido e dominado pelo crime organizado. Jogar jovens infratores nessa máquina de criar e aperfeiçoar criminosos vai trazer alguma melhora nos índices de violência? Não creio, sinceramente.
Não estou dizendo que os menores que perpetraram um dos crimes mais brutais dos últimos tempos, como esse no Piauí, não devem ser punidos. Pelo contrário, eles devem sofrer as consequências legais de seus atos. Porém, acredito que devemos ir mais longe, devemos parar de nos iludir. Temos que encarar de uma vez as mazelas de nossa sociedade: machismo, preconceito, egoísmo, violência, falta de solidariedade. Temos que cobrar também políticas públicas efetivas que amparem nossos jovens, que lhes proporcionem uma vida melhor e mais digna. Precisamos entender que as coisas não se resolvem simplesmente com a aprovação de uma lei.
Enfim, acredito que precisamos parar de esconder a poeira para debaixo do tapete. Ou então, seguiremos chorando totalmente importentes pelas nossas crianças, tanto as vítimas quanto os algozes. – Texto de Márcia Pinna Raspanti.
“Mulher Chorando”, de Cândido Portinari (1944).
Precisamos deixar de lado os preconceitos que vêm no planejamento familiar algo de direita contra os pobres.O planejamento familiar também deve ser tratado sem restrição religiosa. Apenas critérios médicos e, sobretudo, a vontade de cada mulher é que deve ser levado em consideração. Devemos dar a mulher pobre ou miserável as mesmas condições que têm as mulheres ricas ou de classe média, o direito de escolher quantos filhos quer ter, quantos pode sustentar, e engravidar na época em que bem desejar. Isso se chama promover a verdadeira justiça social.
A redução da maioridade penal é, de fato, um assunto muito polêmico. Por um lado, entendo que simplesmente trancafiar menores na cadeia não resolverá o problema, que é estritamente social. Por outro lado, é impressionante a quantidade de menores cometendo crimes com muita naturalidade. Matam sem arrependimento algum. São frios e até se divertem com o crime. Não podem, de forma alguma, ficar impunes.
Não tenho ainda uma opinião formada sobre o assunto, mas concordo sem restrições que o Estado e a própria sociedade (afinal, foi ela quem “inventou” o bandido) precisam discutir e encontrar um meio de evitar que as crianças se tornem adolescentes criminosos.
Faço aqui uma pergunta: se a redução da maioridade penal for aprovada, o menor de idade loiro de olhos azuis, “filhinho de papai”, depois de cometer um estupro, será preso, julgado e condenado? Com certeza, não! Eu já vi esse filme.
A História do Brasil, como você sempre mostra em seus artigos, deixa claro que a sociedade sempre discriminou a população negra e pobre. A polícia, muitas vezes, agiu – e ainda age – mais como “segurança dos ricos”, do que como guardiã da ordem pública.
Alguma coisa tem que ser feita – e rápido! Mas, acreditem, usar a velha fórmula de eliminar pobres para dar segurança aos ricos, não resolverá essa situação que está prestes a culminar numa convulsão social.
“Eduquem as crianças e não será preciso castigar os homens (Pitágoras)”.
Na minha opinião, esta frase diz tudo.
Sem mais.
Você tem muita razão em seus comentários, Oswaldo. É preciso atacar as causas da violência e impedir que mais jovens enveredem pela vida de crimes. E não são apenas os pobres que cometem crimes, mas geralmente são eles que são presos, linchados e exibidos pela mídia como “monstros”. Quanto à redução da maioridade penal, acho que é uma discussão inócua, que apenas desvia a atenção de nossos reais problemas. Hoje, devido ao estado do nosso sistema prisional, um maior, mesmo que tenha cometido crime hediondo, é beneficiado com a redução da pena. Uma das maiores queixas dos defensores da redução é de que os menores podem ficar três anos, no máximo, reclusos. Ou seja, em termos práticos, não haverá muita diferença em termos de tempo de encarceramento. Mas, a lei iria desobrigar os estados de manter as instituições específicas de recuperação de menores: com a redução, passaria-se simplesmente a despejar adolescentes nos presídios lotados e dominados pelo crime organizado. Por que ninguém apresenta um projeto sério para melhorar as instituições voltadas para o menor infrator? Por que não se investe mais em políticas públicas específicas para os jovens? Porque é mais fácil mudar a lei. E a população se ilude com essa falsa sensação de segurança. Obrigada.
Concordo: punir e educar. São medidas inseparáveis. Mas o que é educar? A palavra educação é repetida a exaustão e se tornou quase abstrata.
Além do discurso de sempre, nada mais necessário que escola em período integral com diversas atividades extra-curriculares. Em todo Brasil. Com muita ênfase nos bolsões de miséria. A criança entra cedo e sai no final da tarde de banho tomado e alimentada. Cansada vai para casa e se afasta da rua. A rua é a pior escola para o crime. Outra medida educativa é o planejamento familiar.
Crianças desejadas e preservadas dos perigos da rua. Prevenção. Em uma geração veremos resultados positivos. Quanto aqueles que já entraram no mundo do crime, infelizmente não vejo outra saída a não ser que paguem pelo fizeram.