Um final feliz para D. Pedro e Leopoldina?

        A novela “Novo Mundo” está em seus últimos capítulos. Tem sido veiculado na mídia que o folhetim global estaria reservando o famoso final feliz para D. Pedro e D. Leopoldina (ver no final do artigo). Parece que o público se apaixonou pela nossa primeira imperatriz, o que teria levado os autores a evitar mostrar os fatos históricos – realmente tristes e sofridos para Leopoldina. Os erros e imprecisões históricas da trama já foram amplamente apontados por diversos historiadores. A novela é “baseada” em fatos reais, mas é uma ficção, o que supostamente autorizaria algumas liberdades em relação à História. O debate é válido: quais os limites dessas “licenças poéticas”, principalmente em um país em que muitos desconhecem a História? Nós, historiadores, somos constantemente criticados por cobrar maior rigor no relato dos acontecimentos. Entretanto, devemos ter em mente que o programa televisivo tem como objetivo entreter e não ensinar. E as novelas seguem aquela velha fórmula romântica tão em voga desde o século XIX.

       E a fórmula está longe de perder o vigor, como percebemos pela torcida dos telespectadores por um final feliz para a doce princesa austríaca ao lado de seu príncipe. Esse tipo de história “água com açúcar” ainda encanta boa parte do público, predominantemente feminino. O grupo canadense Harlequin Books se dedica à publicação de livros “para moças” em 109 países, com sucesso indiscutível até os dias de hoje. Herdeiros dos folhetins do século XXI, tais obras encantam gerações e gerações de fãs sonhadoras. Para a editora Lívia Rosa, do Grupo Record, responsável pela publicação dos títulos da Harlequin no Brasil, as leitoras almejam um herói ou “príncipe encantado” com perfil atualizado, mas sempre viril e com um toque de exotismo. Os tipos preferidos são o magnata e o sheik. Os cenários precisam ser sofisticados e glamorosos. As cenas românticas e sensuais. O casal deve superar os obstáculos antes do “final feliz”. (revista Brasileiros, setembro de 2014). Alguma semelhança com as nossas novelas?

       Mas o que há por trás de todo esse romantismo idealizado? De acordo com Mary del  Priore, boa parte das mulheres do século XXI sonha com o amor dos contos de fada e da literatura cor de rosa. “Criadas em um mundo patriarcal e machista, não conseguem se enxergar fora do foco masculino. Vivem pelo olhar do homem, do ‘outro’. Independentes, querem uma única coisa: encontrar um príncipe encantado”.  A grande questão é: o romantismo da ficção pode atrapalhar a vida das mulheres reais ou se trata apenas de diversão inocente, uma válvula de escape para o dia a dia? Cada uma de nós tem a sua resposta…

        Voltemos a Leopoldina. Apaixonada por um homem infiel e rude, a princesa, e depois imperatriz, sofreu por ver seu marido exibir-se em público com a amante, Domitila de Castro, a famosa marquesa de Santos. No início de novembro de 1826, morria o pai de Domitila, o coronel reformado João de Castro Canto e Melo. Correu pela cidade que os gastos do funeral foram excessivos. As maledicências corriam pela corte. Isso exasperou a imperatriz. Ela e D. Pedro tiveram uma briga terrível. Ela ameaçou recolher-se ao Convento da Ajuda, à espera de que o pai a mandasse levar de volta para a Áustria. Fez as malas do imperador e disse-lhe que fosse viver para sempre com a favorita. Ele revidou, acusando-a de gastar demais com comida e ameaçando cortar pela metade as despesas da cozinha. Os insultos foram recíprocos e ele teria se exasperado.

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         D. Pedro, porém, pediu-lhe perdão. Leopoldina, grávida novamente, perdoou tudo, como conta Mary del Priore: “as infâmias e vexames, a amante na porta ao lado, a bastarda a brincar com seus filhos. Voltou a achar que ele era o melhor de todos os esposos. Para confirmar as pazes, ele passou três noites com ela. Preocupou-se com sua saúde. Ela deu-lhe um anel romântico, com dois brilhantes, dois corações e o nome de ambos unidos e gravados. E
avisou: ‘Eu estou morrendo […] quando você voltar do Rio Grande, eu não estarei mais aqui. Os que são separados na vida serão unidos depois da morte.’ Despediram-se chorando. Ele partiu, mas não sem antes fazer uma última desfeita a Leopoldina. Na noite anterior ao embarque, ele tentou forçar a imperatriz a entrar no salão, onde se realizava a cerimônia do beija-mão, acompanhada apenas pela dama paulista. Queria deixar Titília amparada pelo teatro que ele mesmo orquestrara para enganar a opinião pública. A esposa não cedeu, pois julgava o ato atentatório a sua dignidade. Vários biógrafos revelam que ele tentou arrastá-la para a sala com imprecações e gestos violentos. Deu-lhe pancadas? Alguns preferem falar em maus-tratos. A verdade é que ela ‘foi conduzida do lugar da entrevista para um leito de dor’, segundo testemunhas”.

       No início de dezembro de 1826, boletins médicos davam conta da grave situação em que estava a imperatriz Leopoldina. Apesar dos tratamentos e cuidados médicos, a jovem mãe não reagia. “No oitavo dia, Leopoldina começou a suspeitar dos remédios que lhe davam. Delirava, amaldiçoando a amante do marido. Atribuía-lhe poderes de feitiçaria negra. Reagia com gritos ao vê-la. Os sentimentos da submissa imperatriz, contidos por tanto tempo, explodiam. Foram anos em que dividira a cena com a paulista, escondendo sob uma capa de cordialidade o ódio e o desprezo que sentia.No dia 9, mencionou-se a expulsão dos restos de placenta. Piorava de hora em hora”, conta a historiadora.

       O 17º boletim trouxe a notícia: “pela maior das desgraças se faz público, que a enfermidade de Sua majestade e a imperatriz resistiu a todas as diligências médicas empregadas com todo o cuidado por todos os médicos da imperial Câmara. Foi deus Servido chamá-la a Si pelas dez horas e um quarto.” Nenhuma palavra oficial sobre o aborto de um feto do sexo masculino de três meses. As informações finalmente alcançaram o marido. “Minha pena até se recusa a escrever as palavras”, diziam as primeiras linhas de uma carta coberta de cinzas e assinada por frei Arrábida. “A virtuosa imperatriz Leopoldina não está mais neste mundo”.

E Mary del Priore continua o relato:

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          “Não se sabe quando, mas, acamada, Leopoldina ditou uma carta endereçada a Louison: a última. Traçou-a a marquesa de Aguiar, sua camareira. O tom de lamento era o mesmo da correspondência que a jovem alimentara durante anos, sem respostas. Sim, ela era capaz de amargura. E deixou um testamento de infelicidade: “Minha adorada mana, Reduzida ao mais deplorável estado de saúde e chegada ao último ponto de minha vida no meio dos maiores sofrimentos, terei também a desgraça de não poder eu mesma explicar-vos todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam em minha alma, minha mana. Não vos tornarei a ver! Não poderei outra vez repetir que vos amava, que vos adorava! Pois, já que não posso ter essa tão inocente satisfação, igual a outras muitas que permitidas me não são, ouvi o grito de uma vítima que vos reclama não vingança, mas piedade e socorro do fraternal afeto para inocentes filhos que órfãos vão ficar em poder de si mesmos ou das pessoas que foram os autores das minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho.”

        Leopoldina, que sempre fora resignada e muda, mergulhada numa tristeza que a deixava à beira da loucura, não tinha só a preocupação de alertar a família para os riscos que corriam os filhos. Afinal, eles foram sua única fonte de alegria e razão política do casamento. Aos 29 anos, mãe de 5 filhos vivos, a moribunda acusava:

        “Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito, por amor de um monstro sedutor me vejo reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a prova de seu total esquecimento a meu respeito maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças. Muito e muito tinha a dizer-vos, mas faltam-me forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte.”

                 Contou Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, que D. Pedro sentiu o golpe. Apesar de atarefado em meio a mapas, tropas e projetos de campanha, seu amigo recebeu a notícia com “profunda mágoa”. “Tremeu e arrancou os cabelos.” No dia 4 de janeiro, a nau D. Pedro I largava de Santa Catarina, trazendo a bordo o viúvo. E Domitila? Como reagiu à morte trágica da esposa de seu amante? Não se sabe o que deu na amante, Domitila, mas, no auge da crise, ela quis entrar na câmara da doente. “a concubina deu provas de imprudência e loucura”, registrou Mareschal. “Seus ares imperiais ao atravessar os cômodos, como se estivesse tomando posse, e o tom arrogante e escandaloso de seus lamentos fizeram com que a dama de companhia incumbida, segundo os costumes, de presidir a consulta dos médicos, não a recebesse.” Conseguiram barrar-lhe a passagem, mas Titília, por sua vez, não deixou que a jovem mãe, em agonia, visse seus filhos.

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A notícia correu sobre um rastilho de pólvora, nos conta Mary del Priore. O povo se revoltou contra aquela que seria apontada como responsável pela desgraça da boa imperatriz. “Queria vingança contra aquela que era considerada a causa da morte da querida imperatriz. Corria que a concubina se mancomunara com o cirurgião-mor para envenenar a imperatriz; que o verdadeiro príncipe tinha sido trocado pelo bastardo. Cartas anônimas agora eram endereçadas aos ministros. Estes reagiram, falando em afastar Titília da corte. Dois tiros foram disparados sobre um dos cunhados da marquesa de Santos, o coronel Oliva. Em fúria, a multidão dirigiu-se a São Cristóvão. A casa da marquesa foi cercada e apedrejada. Chamaram-se reforços. Vieram patrulhas de cavalaria proteger os muros e portas do palacete”.

          Se por um lado o povo culpava Domitila, por outro santificava Leopoldina. Segundo a historiadora, os jornais cobriam-na de adjetivos: virtuosa, bondosa, gentil. “Enterrava-se a imagem da dona de convicções hereditárias: monarquia absoluta, autoridade real e obediência dos súditos eram princípios sacrossantos que a Habsburgo levou embora consigo. as folhas contavam também como a população reagiu: “gemia o clero ao pé do altar”, choravam famílias no interior de suas casas e mesmo os estrangeiros não escondiam as lágrimas. Do sobrado à senzala, do comércio ao zungu, onde se reuniam escravos, das ruas às estradas, o povo chorava. a cidade-porto em permanente bulício cobria-se de luto. Silenciavam as ruas, sem os gritos das vendeiras e dos cativos prestadores de serviços, sem o peditório de mendigos e de irmãos de confrarias, sem o canto dos presos que carregavam água ou dos escravos carregadores de café”.

         Leopoldina morreu jovem, aos 29 anos, triste e humilhada. Com sua trágica e prematura partida, o romance de D. Pedro e Domitila começou a se desgastar, até terminar de forma melancólica – como todo fim de caso. O imperador logo se casaria com a bela D. Amélia, enquanto que a outrora “favorita” do monarca foi convidada a se retirar da corte, voltando para São Paulo, para não criar constrangimentos à nova imperatriz. Domitila também viria a se casar com o influente Rafael Tobias de Aguiar. Neste triângulo amoroso, quem mais sofreu foi a jovem princesa austríaca.

       E agora, depois de transformada em heroína romântica pelo folhetim televisivo, como reinventar um final feliz para Leopoldina? Isso será possível? A ficção pode mudar a História?

 

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti, baseado em “A Carne e o Sangue”, de Mary del Priore. 

D. Pedro e D. Leopoldina.

Sobre o final da novela Novo Mundo:

D. Pedro tem final feliz com Leopoldina

Pedro e Leopoldina ficam juntos no fim

Pedro e Leopoldina têm final feliz juntos

Último capítulo de Novo Mundo

6 Comentários

  1. GUSTAVO
  2. Vanessa Meira
    • Márcia
  3. Maria José Caldas
    • Márcia

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