Um aviso do Além ao Imperador

A vida do barão de Santo Ângelo era dura. O título que recebeu tarde, não lhe dava nenhuma regalia. Nasceu e morreu pobre. Dos maiores artistas do país, ele não tinha dúvidas: no Brasil, a arte era um “elemento de luxo individual e não um elemento de civilização”. O baronato veio tarde, em 1874, quando sua situação financeira e saúde se deterioravam. Manuel José de Araujo Porto Alegre, o futuro barão, nascido a 29 de novembro de 1806, veio para a Corte aos 21 anos estudar desenho com o artista francês, Jean-Baptiste Debret  na Academia Imperial de Belas Artes. Era conhecido entre seus pares como “o homem-tudo”: poeta, escritor, jornalista, arquiteto, orador, crítico e historiador da arte e diplomata.

Protegido do mordomo do Imperador, Paulo Barbosa da Silva, se aproximou de D. Pedro II de quem se tornou amigo. Depositava no governante todas as suas esperanças de melhoria do país. E entusiasmava-se:

Senhor, moço como sois, podeis abarcar esse império de um extremo ao outro e levantá-lo ao nível das nações mais nobres”.

Viveu em Paris de 1831 a 37 e quando voltou Brasil, casou-se e se tornou diretor da mesma Academia onde estudou. No discurso de posse, mostrou que estava atento às conquistas do tempo:

“O brasileiro já desenha com luz, escreve com o raio e navega com o fogo; já se apoderou das três almas do grande século em que vivemos […] O fio elétrico, o que leva a palavra pelos ares, pelas profundezas do mar e da terra, foi seguido pela nova luz do gás, e pela velocidade da locomotiva. As trevas desapareceram e o tempo e o espaço se encurtaram, a nossa vida duplicou-se por que vamos doravante contar os dias do passado por horas e as horas por minutos. Em um ano tão fecundo como o de 1854, não devemos ficar estacionários”.

Sua proximidade com a homeopatia e o espiritismo vinha de longa data. Em carta do Rio de Janeiro ao sogro, em abril de 1844, a ligação com o assunto se esclarecia. Ele agradecia a aproximação com o Dr. Benoît Mure de quem dava notícias. O médico não era qualquer um. O Dr. Mure chegara à Corte em 1840, a bordo do navio Eole. Ele desenvolveu a prática da “Lei das similitudes de Hahnemann” e preparações medicinais feitas numa máquina que inventara. Sua preocupação era mais social do que médica, pois se acreditava divulgador de uma “missão” para melhorar a vida das pessoas. De acordo com Mure, a homeopatia era mais uma das revoluções na ordem dos tempos. Desta vez na medicina. O círculo homeopático estaria ligado, segundo seus adeptos, à “direção do mundo invisível”.

Adepto das teses do utopista Louis Fourier, ele também um teórico da reencarnação, o Dr. Mure queria criar no Brasil um falanstério: propriedade coletiva regida por princípios socialistas e baseada na fraternidade. Dom Pedro, simpático ao assunto, lhe ofereceu sessenta contos de réis e uma área de quatro léguas em Santa Catarina para onde foi encaminhado, entre 1842 e 1843, um grupo de 217 franceses.

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O experimento não deu certo e Mure se instalou no Rio de Janeiro, fundando em companhia do cirurgião português João Vicente Martins e dois médicos brasileiros, Dr. Gama de Castro e Dr. Lisboa, um dispensário “destinado a propagar a homeopatia entre as classes pobres”. E depois a Botica Homeopática Central, primeira farmácia do gênero no Brasil. O povo via no receituário algo do tipo “feitiço em vidrinhos”. Mas usava-os e muito.

No início do século XIX, a homeopatia tomava impulso e se apresentava como uma revolução em termos do conhecimento que se tinha até então em medicina. Seu método era o inverso do sistema difundido pela alopatia, considerada por Mure, “medicina antiga, tradicional”, Ora, para ele, a homeopatia não devia ser concebida como um sistema isolado nem das outras ciências, nem de uma prática econômica e política. Ela seria parte de um todo, representando uma abordagem holística dos seres e do mundo.

Para satisfação de Mure, o imperador reconheceu a Homeopatia por decreto a 6 de abril de 1846. Não demorou a reação dos alopatas contra o que consideravam uma impostura. Por várias razões, o homeopata retornou a França, em 1848.  Mas deixou aqui um clima favorável aos feitos e fatos “espiritualistas”. Porém, nem tudo foram flores na introdução da homeopatia. O próprio Porto Alegre registrou em carta:

“O Dr. Mure é um homem de conhecimentos, nele confio eu, mas aos outros, exceto o Dr. Lisboa que também estudou, não me entregarei facilmente”. O francês estaria rodeado de “charlatães que por sua mudança súbita a um sistema novo tem caído num exclusivismo que arrepia as carnes”.

Os tempos em que a homeopatia se instalava entre nós, vivia-se, segundo Porto Alegre, uma “época orgânica” e esperava-se o “futuro de grandes coisas”. Na Europa, “tudo se prepara para alguma coisa”.  E, em carta ao sogro arrematava suas impressões cheias de críticas ao materialismo e com esperanças num novo tempo:

“Grandes combates haverão; os homens positivos e exclusivos ainda sustentam o cetro da mais alta posição e a calúnia e o barulho dos fardos da alfândega ainda é mais alta que as vozes modestas dos homens que invocam o futuro. Esta reação que começa agora em ponto pequeníssimo tem de lutar muito e por alguns anos ainda antes de chegarmos ao desejado”.

Em 1857, Porto Alegre partiu para seu primeiro posto diplomático na Prússia. Foi designado cônsul. Certamente, ali avivou os conhecimentos e contatos que já vinham desde sua primeira viagem à Europa, quando estudante. Em idas que fazia à Paris, recebeu do próprio Alain Kardec um exemplar da Revue Spirite. Por essa época, ele praticava a doutrina e realizava sessões espíritas em casa como se vê em correspondência com o amigo, Domingos de Magalhães:

“Eu tive uma consulta de um espírito que é como se fosse ditada por Deus, tão exata foi! Foi dada em Berlim estando eu aqui doente. Que maravilha! Todos os sintomas, toda a marcha do mal, as causas físicas e morais foram descritas com a mais perfeita e segura verdade”.

Ainda na mesma carta comentou que a Princesa Isabel teria lhe perguntado sobre quem seria “seu espírito protetor”. Resposta: “Escrevi-lhe com toda a lisura de minha alma, mas, não sei se recebeu a carta… Havia de receber, ora diga-me?” – perguntava, visivelmente irritado.

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Receoso da “caça as bruxas”, Porto Alegre preferia falar em manifestações de sonambulismo ou magnetismo. Fugia, assim, aos preconceitos. Em carta ao amigo Joaquim Manuel de Macedo pedia “reserva”, pois “tinha medo de passar por louco”. Mas não deixava de falar do assunto. Sua peça teatral Os Voluntários da Pátria, colocou em cena uma sonâmbula que via à distância, Dona Alexandrina. O personagem era inspirado em uma vidente brasileira que ele conhecera na cidade de Dresde, onde servia. Incendiário, o texto assumia publicamente e contra a Igreja sua posição de kardecista. E isso quando o espiritismo ainda era associado à coisa de Satanás. A personagem não escondia: embora se apresentasse como vidente, “escrevia pedindo conselhos ao ano da guarda”! Para bom entendedor…

Porto Alegre se sentia um soldado em meio ao combate do século: o espiritualismo contra o materialismo. Esse último representado nos “excessos do luxo”, nos casamentos por dinheiro e “outros vícios” da burguesia.

Pouco depois, em 1867, movido pelos debates humanitários que alimentavam o espiritismo, Porto Alegre enviou a D. Pedro, um memorial de sua autoria sobre a extinção gradual da escravidão no Brasil: “obra gigantesca e salvadora que lhe dará glória” e o “Império debaixo de tão altos guias”. Foi antecedido de dois anos pela proposta abolicionista de Bezerra de Meneses.

Na mesma época, escreveu de Paris, onde se encontrava em missão diplomática preparando a participação do Império na Exposição Universal. Depois de louvar Napoleão III, amigo e admirador de Kardec por seu “gênio, grandeza e simplicidade”, comentou sobre a colônia brasileira: era constituída “com gente de todos os calibres, principalmente da espécie asinina – de asnos”. Mostrando-se pessimista em relação ao fim da escravidão e aos governantes martelava– “não vejo senão cegos e da pior qualidade que é a dos que não querem ver”.

E para concluir: “o decênio era fatal”. “Se os nossos governantes e legisladores fossem espiritistas, tudo andaria melhor, porque haveriam de crer em Deus, na vida futura, e olhar para seus grandes e sublimes deveres”.

O pessimismo típico do romantismo invadia seus pensamentos. Dizia ter “terríveis pressentimentos” sobre o país. Ele previa que, depois da guerra do Paraguai, os nossos males seriam maiores: “O governo planta a descrença no coração da mocidade e coloca nos velhos a desesperança”. Acusava: “Microscópicos estadistas arruinavam tudo”. E ele via em toda a parte uma “orgia moral”.  E cerrando fileiras com os espíritas, declarava-se “inimigo do materialismo oficial, hei de comparecer diante de Deus sem o crime de lesa moral e sem ter culpa de corruptor”. E, sobre uma comunicação que recebera, registrava: “as almas não são crianças como pensa muita gente”.

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Em carta a D. Pedro II, rabiscou enunciado dramático – “o Brasil às vésperas de um triunfo ou de uma catástrofe”. E nas linhas a seguir, assumiu, sem disfarces, o discurso espírita, ditando ao soberano o que fazer:

“As minhas apreensões são grandes, maiores são minhas esperanças porque confio em Deus. Nada será, Senhor, se Vossa Majestade Imperial começar já o remonte de sua Grande Missão, a que o colocará no céu, ao lado de Deus, e na terra, a par dos maiores homens da humanidade.

Os soberanos de sua natureza são mandados; e Vossa Majestade Imperial tem de ser o apóstolo da verdadeira liberdade da regeneração do Brasil e o imortal criador da segunda via do Império Americano sem a qual ele deixará de existir.

Há princípios nos quais está Deus e os homens. O primeiro vive eternamente e os segundos morrem como coisas transitórias […] A medicina social é mais difícil do que a corporal porque deve curar e impedir as moléstias. Prevenir as coisas a tempo e impedir desastres é a sabedoria” […] Vossa Majestade Imperial, além de outros pactos, já teve dons bem extraordinários, que bel lhe mostraram que é protegido por Deus e de que este o guarda para cumprir uma santa e grande missão na terra!”.

Mas o grande inimigo, martelava Porto Alegre, era a escravidão “pústula gangrenosa que procede de vícios internos” e que fazia dos “déspotas em casa”, maus cidadãos na rua. E a Dom Pedro, “Imortal benfeitor”, pedia:

“Acabai com a escravidão, Senhor. Porque Deus assim determina e porque vos falo em Seu Nome. Aos pés da estátua de Vossa Majestade se colocarão emblemas marciais, troféus de vitória, as recordações e todos os florões do mais belo simbolismo. Mas nenhuma dessas coisas falará tanto ao coração humano como as imagens desses escravos livres, sorrindo em grata adoração por seu Imortal Redentor”.

D. Pedro levou a sério as recomendações? Certamente, não, mas, talvez lembrasse da premonitória correspondência no dia em que foi traído pelo golpe republicano… E como Porto Alegre sabia de tudo isso? Resposta: “Estou vendo porque minha alma está no futuro”.

A seu amigo Joaquim Manuel de Macedo escreveu longa carta de doze páginas, instruindo sobre de como descobrir um médium e lidar com espíritos. Quem protegia o escritor? São Jerônimo. Aproveitou para contar-lhe também de seus diálogos com o Além e as constantes evocações do espírito de Gonçalves Dias.

Porto Alegre se considerava médium, além de grande leitor dos textos kardecistas: “Hoje pretendo ler um diálogo entre um vivo e um morto, obra conciliadora, mas enérgica…”. E levava a sério sua crença, costumando dizer: “Para o outro mundo basta o coração, porque nele penetra o olho de Deus…”.

– Mary del Priore.

d.pedroseg

 

D. Pedro II: o Além contra a escravidão.

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  1. Iolanda Figueiredo

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