Exemplo de um dos muitos textos impressos ou manuscritos que circulavam entre os séculos XVII e XVIII, entre a Colônia e a Metrópole portuguesa, insistindo na diferença entre o bom e o mau amor. O fato de estar manuscrito demonstra que as pessoas tinham o hábito de carregar consigo pequenos trechos de textos moralizantes, numa tentativa de adestrar-se contra os sentimentos aí discutidos.
“O CURIOZO CORTEZÃO: e que se trata dos quatro ventos, que mais dominam e sopram o coração do homem: que são fortuna, amor, amizade e riqueza. Dirigido ao Meritíssimo Sr. Dom Joseph de Lancastre.
Amor que cousa seja: como é razão virtude e arte, por se estender a três fins e ter cinco qualidades. E como o Amor se distingue do desejo.
Amor é um não sei que, que vem não sei por onde: mandam não sei que engendrar-se não sei como: contenta-se com não sei que, sente-se não sei quando, mata não sei porque: e finalmente o atrevido Amor, sem romper as carnes de fora, nos desangra as entranhas de dentro. Outros dizem é um escondido fogo, uma agradável chaga, um saboroso veneno, uma doce amargura, uma deleitável enfermidade, um alegre tormento e uma franca morte. Sendo o Amor um metal tão delicado, um câncer tão oculto, que se não põe, no rosto onde se veja, nem no pulso onde se sinta, mas no coração onde ainda que se possa sentir não se ousa descobrir com que o cômico veio a dizer, ser o Amor um Espírito insensível, que entrando por onde quer, e abrasando o peito sem cor, sem seta, nem arco pode o impossível em um peito humano, recebesse no conceito, e no coração se apresenta. Donde assentamos, o Amor é insensível pois não entra pelos olhos por não ser cousa corada, nem pelas orelhas por se não misturar com o ar, não pela boca por se não comer nem beber, e menor pelo tocamento por não ser, palpável, mas entra pela vontade: que como é natural do homem desejar seu bem, tendo o do Amor pelo maior, abre a porta da vontade, por entre a se aposentar no coração, e posto ali, fica mui difícil de sair, pelo que se segue ser o Amor um desejo irracional, que facilmente se emprega, e com grande dificuldade se perde.
Outros há que dizem ser o Amor uma Alma [rasurado] das potencias, e um segredo entre eles conhecido, de cuja Alma, nascem as três essências da vontade, memória e entendimento: que como o sentido da vista, manda a fantasia aperfeiçoam do bem que vê (como se dirá em outro lugar) e nela he julgada entendimento, sendo boa, a manda a vontade, que a põem em memória e por este modo, fica Amor dominando as três potencias da Alma: com que Amor fica sendo uma afeição e força de amizade, cansada da formosura …”.
Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
Nicolas-Antoine Taunay: Henrique IV cumprimentando Gabrielle