A “pílula rosa”, a indústria farmacêutica e a sexualidade feminina

Nas últimas horas, uma das notícias mais comentadas no planeta foi a do surgimento de uma pílula capaz de estimular a libido das mulheres. Ela foi aprovada pelas autoridades que regulam medicamentos nos Estados Unidos e deve começar a ser vendida por lá a partir de outubro. A empresa americana Sprout desenvolveu a pílula cor de rosa Addyi. A exemplo dos homens, cujo comportamento sexual mudou bastante desde a entrada da pílula azul (Viagra) no mercado, as mulheres contarão com ajuda medicamentosa para suas dificuldades sexuais. Os impactos desse lançamento ainda são imprevisíveis.

A discussão sobre o orgasmos feminino vem de longe. Nas primeiras décadas do século XX, enquanto uma parte da sexologia classificava patologias e o lado obscuro da sexualidade, uma segunda onda proclamava aos aspectos positivos do sexo dentro do casamento. Entre alguns poucos, sexo não era visto apenas como instinto de reprodução, mas como reflexo do sentimento entre esposos. Sexólogos dos mais reputados como o australiano Havellock Ellis, intérpretes do auto-erotismo e críticos da repressão, eram traduzidos no mundo inteiro. Tais obras científicas inspiraram manuais de sexologia para um público “não científico”, muitas delas inspiradas em cartas endereçadas por homens e mulheres aos especialistas.

Porém, a problemática desses pioneiros continuava presa aos modelos do século anterior. Tudo os fazia raciocinar em termos de binômios: feminino/masculino, ativo/passivo, iniciada/iniciador, conquistada/conquistador. A sexualidade feminina era a principal vítima desse tipo de leitura. O clitóris, percebido como uma anomalia “viril” via-se, assim, desvalorizado, sobretudo entre os adeptos da psicanálise. Sigmund Freud, seu fundador, definia a libido como masculina e concluiu que moças e rapazes deviam organizar sua sexualidade em torno do pênis. A princípio, na ausência do pênis, a menina, pela masturbação clitoridiana, adotava o mesmo comportamento do que o garoto. Na idade adulta, contudo, a mulher devia recusar esse prazer infantil, interpretado por muitos como sinal de frigidez, optando pelo coito vaginal. Com linguagem renovada, a psicanálise acabava por justificar os papéis prescritos pela sociedade para as mulheres. Só Willem Reich rompeu com este esquema e foi pioneiro em apontar a força da “potência orgástica”. Mas sua pesquisa, realizada entre 1927 e 1935, A revolução sexual, seguiu como assunto confidencial e só foi traduzida para o português nos anos 40.

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Se não se conhece os efeitos dos primeiros discursos sexológicos, sabe-se, porém, que eles contribuíram para tirar o assunto do silêncio e da vergonha. Compartilhado por uma pequena minoria, educada e moradora dos grandes centros, o tema da sexualidade incentivou as primeiras questões sobre o prazer feminino e as técnicas para incrementá-lo antes, durante e depois do coito por meio de beijos, gestos, carícias e palavras.

O campeão de vendas na época foi um ginecologista holandês: o doutor Theodore Van den Velde, publicado em 1925, na Europa, e traduzido para o português no mesmo ano. Escrito com linguagem acessível e rico em detalhes espalhados por suas 800 páginas, o livro ensinava aos casais a atingir o orgasmo juntos, pelo coito vaginal. Mas, atenção: o marido era o responsável direto pelo o gozo da esposa. Ele, o professor sabe-tudo. E ela, a aluna aplicada. Apesar da relação assimétrica, característica da época, o importante era “chegar junto”:

“Nas uniões ideais participariam de modo igual o homem e a mulher. Nestas uniões, as mais íntimas que podem existir, se transformam ambos em um só ser, física e animicamente. Não obstante seja o homem o dispensador e a mulher a receptora, sendo como é o marido a parte ativa, de modo algum o papel da esposa é unicamente passivo. A conjugação sexual, em realidade, não segue as leis fisiológicas, não tem verdadeiramente seu profundo sentido, não alcança inteiramente seu objeto, senão quando ambos participam dela plenamente, quando gozam conscientemente, sem restrições, toda a alegria, toda a satisfação da união sexual. Se existe um postulado de igualdade dos direitos e dos deveres de dois seres, ele é, sobretudo, verdadeiro e irrefutável na copulação. Assim, pois no super-matrimonio não é o marido que realiza o coito, mas ambos os cônjuges. O homem não possui a mulher, mas une-se a ela”.

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Van de Velde levava a sério a questão da igualdade na cama e incentivava os homens – mais rápidos e mais “aptos” – a esperar por sua companheira. Quando a mulher não tinha suficiente experiência, e o médico lembrava que, entre elas, havia muitas que não se interessavam pelo assunto, “as pouco passionais”, o homem deveria dar-lhe algumas “vantagens”. E insistia: “é absolutamente necessário que o orgasmo dos dois seja simultâneo”.

Segundo o médico holandês, toda excitação sexual de certa importância, que na mulher não terminasse pelo orgasmo, representava uma lesão, um trauma. E a soma deles, podia conduzir a transtornos crônicos, físicos e psíquicos, dificilmente emendados.A obra descreve com gráficos e curvas os processos, ou melhor, as categorias de atos sexuais, em que os cônjuges conseguiam chegar ao orgasmo juntos. O “coito ideal” era aquele onde havia a “existência de certa conformidade entre os órgãos sexuais de ambos os co-participes”. Sem igualdade no prazer, pregava Van de Velde, não havia super-matrimônio.

Esse foi o momento em que o comportamento sexual ligado à reprodução e a sexualidade começavam a separar-se. Até então, o que se conhecia como “sexualidade” não tinha existência própria. As relações sexuais dividiam-se entre as voltadas para a renovação das gerações e aquelas, mais erotizadas, voltadas para o prazer. E essa divisão coincidia matematicamente com aquela que separava as mulheres puras das impuras. Mas tal maneira de pensar era, sobretudo, um alívio para os homens. Ao colocar o orgasmo do casal e, em especial o da esposa, em primeiro plano, os médicos abriam o flanco para outro problema: seria o marido capaz de proporcionar prazer a sua mulher?

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No século XXI, a discussão é outra. E a pílula rosa parece tomar o lugar das opiniões médicas. Segundo pesquisas, 46% das mulheres americanas – suas primeiras consumidoras -, afirmam sofrer de disfunções sexuais. Os especialistas procuraram durante anos, uma pílula que estimulasse as mulheres tanto física quanto psicologicamente, pois entendem que a sexualidade feminina é bem mais complexa do que a dos homens. Ainda que não consiga entender os mistérios da sexualidade feminina, a indústria farmacêutica sabe que se trata de um mercado de milhões de dólares e por isso achou um medicamento que permite a mulher se sentir mais desejável, disposta e interessada no assunto. Isso, pois pesquisas realizadas na Europa mostram que as mulheres são muito ativas no início das relações amorosas. Quanto tempo dura esse período, não se sabe ao certo. Porém, depois de três ou quatro anos, com a rotina, a chegada dos filhos e o cansaço, o desejo parece desaparecer, para desespero dos homens. Ele se reacende, mais facilmente, diante de um novo encontro.  Há quem se pergunte se a o desejo feminino está ligado à libido ou ao tédio – como o faz a psicóloga canadense Lori Brotto, da Universidade da Colúmbia Britânica. A pergunta que fica é: as mulheres se tornarão mais monogâmicas ou sexualmente mais agressivas? As sociedades patriarcais, como a brasileira, não suportam as “ninfômanas”. O melhor, então, é esperar para ver os resultados.

– Texto de Mary del Priore. 

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O “Viagra” feminino chega às farmácias dos EUA em outubro.

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  1. celso almeida e silva nunes

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