O bacharel mulato que desafiou D. Pedro I

         No Brasil imperial, época de mudanças, um personagem importante invadiu a cena: o mulato. Em seu clássico Sobrados e Mocambos, Gilberto Freyre foi dos primeiros a observar fenômeno: ele era uma força nova e triunfante. Segundo Freyre, o mulato vinha se constituindo em elemento de diferenciação da sociedade rural e patriarcal no universo urbano e individualista. Ele estaria se integrando, ou melhor, se acomodando, entre os extremos: o senhor e o escravo.  A urbanização do Império, a fragmentação das senzalas em quilombos, o crescimento de alforrias e a inserção nos cargos públicos e na aristocracia de toga, deu visibilidade aos mulatos, “aos morenos”.

         Nos jornais, notícias e avisos sobre “Bacharéis formados”, “Doutores” e até “Senhores Estudantes”, principiaram, desde os primeiros anos do século XIX a anunciar o novo poder daqueles que agiam e se expunham em becas escuras. “Trajes de casta capazes de aristocratizar” seus portadores, diz Freyre. Muitos não dispunham de protetores políticos para chegar à Câmara nem subir à diplomacia. Muitos estudaram ou se formaram graças “ao trabalho de uma mãe quitandeira ou um pai funileiro”. Outros faziam casamento com moças ricas ou de famílias poderosas. Mas eram visíveis em toda a parte.

         É o mesmo Gilberto Freyre quem conta o exemplo de José da Natividade Saldanha, bacharel mulato e protagonista de uma história surpreendente. Filho de padre, Saldanha estudou para padre no Seminário de Olinda, mas rebelou-se contra o Seminário. Durante a Revolução Pernambucana, em 1817, ele deixou a cidade com os familiares e rumou para Coimbra, a fim de continuar os estudos. Na volta ao Recife, se insurgiu contra Dom Pedro I e sua constituição. Foi eleito secretário do governo de Manoel de Carvalho Paes de Andrade e encontrava tempo para escrever relatórios sobre a revolução, pensando em deixar para a posteridade as informações do acontecido. Com a derrota dos insurretos, Natividade Saldanha fugiu.

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         Na primeira tentativa frustrada de refugiar-se na França, perdeu o navio e escondeu-se novamente em Olinda. O cônsul americano James Hamilton Bennet o ajudou na fuga para Filadélfia, Estados Unidos, onde sofreu discriminação, por ser mulato. Viajou, então, para a França, onde conseguiu um passaporte português. Sob perseguição do governo brasileiro, ele foi expulso do país pela polícia local. Foi à Inglaterra e, de lá, à Venezuela, onde sofreu privações. Na Venezuela, Natividade Saldanha conheceu o General Abreu e Lima, que o encaminhou a Simon Bolívar. Conseguiu, então, exercer a advocacia naquele país. Ali, comentou a sentença de um juiz branco, Mayer, na qual ele, Saldanha era chamado de mulato. E retrucou:

”[…] Esse tal mulato Saldanha era o mesmo que adquirira prêmios quando ele, Mayer tinha aprovação por empenho e quando o tal mulato recusava o lugar de auditor de guerra em Pernambuco, ele, Mayer, o alcançava por bajulação”.

            Saldanha abandonou Caracas e foi à Colômbia pela selva, passando a residir em Bogotá, onde passou a ensinar Humanidades. Soube, então, que tinha sido condenado à morte por enforcamento no Brasil. Tomando conhecimento que um antigo amigo exercia atividade no tribunal que o condenou, enviou-lhe uma procuração com os seguintes termos:

“Pela presente procuração, por mim feita e assinada, constituo por meu bastante procurador na Província de Pernambuco ao meu colega Dr. Tomaz Xavier Garcia de Almeida, para em tudo cumprir a pena que me foi imposta pela Comissão Militar, podendo este morrer enforcado, para o que lhe outorgo todos os poderes que por lei me são conferidos.

Caracas, 3 de agosto de 1825.

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2)”, Editora LeYa, 2016.
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Bênção_das_bandeiras_da_Revolução_de_1817

Bênção das Bandeiras da Revolução de 1817, de 

Antônio Parreiras.

2 Comentários

  1. JAIRO BRAZ DE SOUZA
  2. Liliane de Paula Martins

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