A heroína romântica e a mulher esportiva

A segunda metade do século XIX foi marcada pela presença do romantismo na literatura e, por conseguinte, de imagens românticas associadas às mulheres. Movimento que atingiu sobretudo as camadas letradas no Brasil, o romantismo propunha como atitude certa prostração exibicionista, a exaltação fervorosa do eu, a excitação sentimental. Tais sentimentos desdobravam-se na valorização da tez espectral, marmórea, tez de reflexos verdes ou azuis, a  propalada “fronte ebúrnea”, cantada por poetas como Alberto de Oliveira. Essa face de esfinge era percebida como reflexo do fogo interior, do destino vencido pelas doenças que grassavam: tísica, anemia ou tuberculose. O ar languido era também aquele da fatalidade. O interessante é que não faltaram receitas de beleza para dar realidade a tais representações.

Ao lado dos esforços para aproximá-las de uma heroína romântica havia, contudo, outro movimento a empurrar as mulheres. Desde o início do século, na Europa, multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os manuais de medicina que chamavam atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. As idéias de teóricos importantes como Sabbathier, Amoros, Tissot ou Pestalozzi  corriam o mundo. Uma nova atenção voltada à análise dos músculos e das articulações graduava, como explica Perrot, os exercícios, racionalizando e programando seu aprendizado. Não se desperdiçava mais força na desordem de gesticulações livres. Os novos métodos de ginástica investiam em potencializar as forças físicas, distanciando-se do maneirismo aristocrático da equitação ou da esgrima, ou da brutalidade dos jogos populares. Nos finais do século, mulheres começam a pedalar ou a jogar tênis na Europa. Não faltou quem achasse a novidade, imoral, uma degenerescência e até mesmo, pecado. Perseguia-se tudo o que pudesse macular o papel de mãe dedicada exclusivamente ao lar.  Era como se as mulheres estivessem se apropriando de exercícios musculares próprios à atividade masculina. Algumas vozes, todavia, se levantaram contra a satanização da mulher esportiva. Médicos e higienistas faziam a ligação entre histeria e melancolia – as grandes vilãs do final do século – e a falta de exercícios físicos. Confinadas em casa, diziam, as mulheres só podiam fenecer, estiolar, murchar. Era preciso oxigenar as carnes e alegrar-se graças ao equilíbrio saudável do organismo. O esporte seria mesmo uma forma de combater os adultérios incentivados pelo romantismo. Afinal, encerradas ou aprisionadas, só restava às mulheres a sonhar com amores impossíveis ou tentar seduzir o melhor amigo do marido.

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A elegância feminina começou a rimar com saúde. Se a mudança ainda se revelava hesitante, não demorou muito a instalar-se e a tornar-se inexorável. As mulheres da elite sempre montaram a cavalo. A equitação, como esporte,  foi praticada por uma parcela importante de nossa aristocracia, sobretudo, durante o reinado de D. Pedro II. Ao ser recebido em Petrópolis em abril de 1872, o monarca teve a sua espera “as amazonas da Corte!”. Gilberto Freyre acrescenta que desde os finais do século XIX, a ginástica sueca concorria para dar maior vigor aos brasileiros crescidos nas cidades; sem a vantagem dos banhos de rio, dos passeios a cavalo e da vida ao ar livre em fazendas e engenhos.

Mas o Brasil em que o corpo feminino começa a movimentar-se na direção dos esportes, já não era mais o do fim do Segundo Reinado. Era o do início da República, no qual as cidades trocavam a aparência paroquial por ares cosmopolitas; nelas, misturavam-se imigrantes, remanescentes da escravidão e representantes da elite. Nesse cenário, nascia uma nova mulher. “Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se a um templo se evadisse  um ídolo. É como se a um frasco se evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada em banalidades é um criminoso esbanjamento de energia. A família se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos seus liames”, queixava-se um editorial da Revista Feminina, em agosto de 1890. Ela abandonara os penteados ornamentais com ondas conseguidas graças aos ferros de frisar para cortar os cabelos à “la garçonne”. O sport, antes condenado, tornara-se indicativo de mudanças. A revolução dos costumes começou a subir as saias e essas brigavam com as botinhas de cano alto que, por sua vez, procuravam cobrir o pedaço da canela exposta. A cintura de vespa, herdada do século anterior, continuava aprisionada em espartilhos. Esses, contudo, tinham melhorado. O dissimulado instrumento de tortura, feito de pano forte e varetas de barbatana de baleia, tão rígidas a ponto de sacrificar o fígado e os rins, mudara. Era, agora, feito de varetas flexíveis de aço. A partir de 1918, ele começa a ser substituído pelo “corpinho”. Se os primeiros, salientavam os seios como pomos redondos, o corpinho deixavam-nos mais livres e achatados.

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Ao final da Primeira Guerra, as chamadas “exuberâncias adiposas”, passam a ser contidas, não mais pelo terrível espartilho, causador de danos irreparáveis, mas pela cinta elástica. “Artigos sanitários”, antes desconhecidos e que atendiam pelo insólitos nomes de Kotex, Kez, e Modess anunciavam o fim do tabu da menstruação nas revistas femininas. Vendidos à dúzia, eram complicadas “toalhas higiênicas com franjas”, “serviettes” esterilisadas, “calças sanitárias em borracha e marquisette, rematada com debruns de borracha”, “cintos para serviettes”. Catálogos de roupas brancas, feitas por sofisticadas bordadeiras, revelavam que a vida no boudoir, no quarto de vestir e de dormir ganhava novos contornos.

Para além do “corpinho” e de cintas , o corpo começava a se soltar. O famoso costureiro francês Paul Poiret rompe com o modelo de ancas majestosas e seios pesados para substituí-lo por outro. No início do século tem início a moda da mulher magra. Não foi apenas uma moda, foi também, diz Philippe Perrot, o desabrochar de uma mística da magreza, uma mitologia da linha, uma obsessão pelo emagrecimento; tudo isso temperado pelo uso de roupas fusiformes.  O “tamanho” ou seja, rubrica que passa a determinar a largura e a conformação do corpo em relação à roupa, torna-se uma espécie de forma anatômica. Além de constrangimento moral e não apenas corporal, o tamanho traduzia, num martírio mental e não mais físico, a linha de demarcação que passara  a reprovar e estigmatizar toda a mulher que o extrapolasse. “Dê-me um menor, esse não é o meu tamanho!”, passava a ser triste confissão.

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Na Europa de onde vinham todas as modas, a entrada da mulher no mundo do exercício físico, do exercício sobre bicicletas, nas quadras de tênis, nas piscinas e praias, trouxe também a aprovação de corpos esbeltos, leves e delicados. Tinha início a perseguição ao chamado “enbompoint”, – os quilinhos a mais – mesmo que discreto. O estilo “tubo” valorizava curvas graciosas e bem lançadas.  Alguns médicos rebelavam-se contra a moda de tendência masculina que associavam às ideias feministas e ao desprezo pela maternidade. Os cabelos curtos, as pernas finas, os seios pequenos eram percebidos por muitos homens como uma negação da feminilidade. O movimento, contudo estava lançado. Regime e musculação começavam a modelar as compleições longilínias e móveis que passam a caracterizar a mulher moderna, desembaraçada do espartilho e ao mesmo tempo, de sua gordura decorativa.  As pesadas matronas de Renoir são substituídas pelas sílfides de Degas. Insidiosamente, a norma estética, afirma Philippe Perrot, emagrece, endurece, masculiniza o corpo feminino, deixando a “ampulheta” para trás.- Mary del Priore.

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“A Banhista”, de Renoir; anúncio de lingerie mostra a nova silhueta feminina: mais leve e longilínea.

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