A pornochanchada e as “duas caras” do brasileiro

Anos 70, auge do governo militar. Gemidos e sussurros: nos porões da ditadura, os dos presos políticos. No escurinho das salas de cinema, os dos amantes. Era a explosão das pornochanchadas. As chanchadas dos anos 40 e 50 e a influência das comédias italianas abriram o caminho do gênero fabricado, inicialmente, na Boca do Lixo, zona de prostituição da cidade de São Paulo. Na Rua do Triunfo, nossa doméstica Hollywood, instalou-se uma indústria que respondia por 40% dos filmes nacionais nesta época: média de 90 filmes por ano. Mas o que era a pornochanchada? Segundo o dicionário, um “gênero de filmes populares de baixíssima ou péssima qualidade conceitual, formal e cultural, caracterizados por cenas de nudez, de sexo explícito e diálogos mesclando pornofonia e humor escatológico”.

Títulos que inundaram as telas brasileiras, deixando para trás as caríssimas produções norte-americanas não escondiam o enredo: “As cangaceiras eróticas”, “Essa mulher é minha e dos meus amigos”, “Como era boa nossa empregada”, “A viúva virgem”, “O homem de Itu”, “A boneca mecânica”. Os cartazes também tinham imagens apelativas. Quanto mais picante, maior a fila na bilheteria. A cota de exibição obrigatória de filmes brasileiros, uma das muitas medidas de desenvolvimento econômico e cultural, criadas pela Ditadura Militar, dava espaço para o desenvolvimento do gênero. Filmes nacionais tinham espaço cativo e obrigatório. O sucesso de público era grande e os filmes ficavam em cartaz semanas seguidas, provando-se muito lucrativos. Quem os financiava eram produtores independentes. O sucesso de um, garantia a produção do próximo.

A pornochanchada foi também o berço de vários atores e atrizes que, posteriormente, se descolaram do gênero: Sonia Braga, Vera Fischer, Carlos Mossy, Antonio Fagundes e Reginaldo Farias, entre outros. A clientela eminentemente masculina, frequentava as salas das grandes regiões centrais das capitais. Do trabalhador braçal ao profissional liberal, e até mendigos não escapavam ao apelo das histórias apimentadas. Tais comédias giravam em torno do erotismo de aventuras sexuais, relacionamentos extra-conjugais ou homossexuais.

Não havia sexo explícito. Assim como no Teatro Rebolado dos anos 30, explorava-se a ambiguidade, os limites entre malícia e ingenuidade. Existem muitas explicações para o sucesso do gênero. Há a tese de que o Estado autoritário queria controlar as massas por meio de sua “imbecilização”. Que cerveja, futebol e “sacanagem” seria a fórmula.

Durante muito tempo, vingou a interpretação de que a pornochanchada foi incentivada pelo governo, porque desviava a atenção das perseguições políticas. Nem tanto. O gênero apenas refletia as mudanças da década: pílula anticoncepcional, movimento feminista e liberação de costumes. Afinal, as atrizes excessivamente maquiladas e seminuas mexiam com o imaginário do homem brasileiro, rompendo com a representação tradicional da sedutora ingênua, heroína dos romances de então. E depois, havia a forte identificação masculina com os galãs, predadores sexuais, canastrões irresistíveis. A tudo isso, somava-se a possibilidade de rir de situações conhecidas: o marido traído, a impotência no momento da relação, a esporádica aventura homossexual, a mulher “faminta de sexo”, etc. Por fim, não é demais lembrar que no Brasil, fez-se o que já se fazia no resto do mundo: alimentou-se um mercado de consumo que tinha no erotismo o seu produto preferido. Seriam tais filmes pornográficos? Nem tanto. Eles cabiam como uma luva nos limites impostos pela censura.

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Paulo Emílio Salles Gomes, um dos mais importantes estudiosos do cinema brasileiro, chamou atenção para a importância destes filmes como retratos fiéis da sexualidade brasileira. O erotismo massificava-se, nos anos 70. A instituição do casamento era constantemente ridicularizada e nele, não faltavam transgressores: maridos que traíam suas esposas ou corneados, viúvas fogosas, virgindades perdidas. As mulheres eram sempre belas e desinibidas. Seu corpo, valorizado pelo olhar da câmara. A forma de mostrar uma blusa entreaberta, uma calcinha ou um seio era mais importante do que o próprio seio ou a calcinha. Ao explorar a figura feminina, a pornochanchada colocava-se à disposição do olhar masculino.

Segundo estudiosos, na mesma época eram correntes as relações sexuais entre homens e travestis, geralmente passivos. A bissexualidade feminina também aparecia e o gênero revelava, sem retoques ou hipocrisia, a fauna sexual do mundo real. O renomado diretor Davi Cardoso, em entrevista a revista Playboy esclareceu: “ (…) o homossexual é uma figura imprescindível em toda pornochanchada”.

As fitas sofriam censura. Não política, mas moral. Diversas exigências em nome dos bons costumes tornavam as histórias tão mutiladas pelos censores, que ficavam ininteligíveis.  Seios nus, por exemplo, só podiam ser mostrados, um a cada vez. A ousadia maior era exibi-los juntos, assim como mostrar as nádegas dos atores. Pelos pubianos eram raros. O nu frontal masculino não ocorria. O mesmo palavrão só podia ser repetido duas vezes. Três, era demais. Davi Cardoso, por exemplo, valia-se da censura para chamar atenção sobre os filmes que fazia. A tarja preta nos cartazes, sugerindo o encobrimento das partes “mais fortes”, aumentava a curiosidade da clientela. Pornochanchada tranquila? Não. Os setores conservadores e intelectualizados reagiram. Criticavam a banalização da sexualidade, a exploração do corpo da mulher, o machismo. A adaptação de livros nacionais, incentivado por órgãos oficiais como a Embrafilme indicaria “no juízo de alguns estudiosos, uma política deliberada de combate à voga do filme erótico”, informava a revista Veja, em setembro de 1975.

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Já cineastas do porte de Eduardo Escorel e Arnaldo Jabor viam nisso uma “reação moralista e conservadora da burocracia bem pensante à comédia erótica”. Roberto Farias, um ano depois, reagia em favor de “caminhos mais conseqüentes para o cinema brasileiro”. Dos milhões que a Embrafilme recebeu nada seria aplicado, segundo ele, em “filmezinhos supostamente eróticos”. Ele não era contra a pornochanchada, mas acreditava que o cinema brasileiro não podia ficar refém dela. Farias, queria evitar “uma generalizada confusão entre pornografia e um erotismo feito de simples insinuações”, pois afinal nenhum realizador de pornochanchada, nem os mais eufóricos, “tem a ilusão de oferecer ao público iguarias pornográficas como closes da sensível garganta da senhora Linda Lovelace (“Deep Throat”)”. Referindo-se ao lendário “Garganta Profunda” que escandalizou os EUA.

Na época em que a pornochanchada ia bem, o cinema ia mal. Ele começava a sofrer uma implacável concorrência da televisão. Em outubro de 1980, foi liberado pela censura “O último tango em Paris”. A sociedade reagiu e os veículos de comunicação multiplicaram suas críticas. Abatia-se sobre o país, segundo um deles, “um maciço surto de pornografia”. “Ressaca pornográfica” foi o título de uma manchete. Não faltava quem quisesse a volta da censura. Juízes e políticos exigiam que as revistas pornográficas circulassem em plásticos opacos e o então presidente, João Batista Figueiredo, determinou que o Ministério da educação não financiasse filmes ou peças teatrais consideradas obscenas. Capitaneando essa “cruzada” moralista estava o parlamentar capixaba Dirceu Cardoso que fazia da liberação do filme japonês “O império dos sentidos” seu “cavalo de batalha”, apoiado pelo Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel.

A imprensa apoiava. A situação havia passado dos limites: “Em menos de um ano liberaram-se no Brasil as proibições de toda uma década”, registrava a revista Veja, em outubro de 1980. Entre dezenas de pornochanchadas em exibição, títulos grosseiros enchiam as telas: “A colegial que levou pau”, “Com titia eu podia” ou “O deputado erótico”. O artigo citava também o filme “Ariella” onde a personagem principal fazia sexo com quase toda a família. A própria autora do livro que inspirou o filme, Cassandra Rios, afirmava que a pornografia estava indo longe demais: “Interpretaram mal a abertura. É preciso abrir sem arreganhar”. Cartazes de filmes também eram criticados como pornográficos. Até a TV foi alvo de condenações pela exibição de “cenas íntimas” nas novelas e pelo erotismo presente em anúncios publicitários.

A pressão da classe média urbana surtiu efeito. Em março de 1982, o presidente João Batista Figueiredo, em rede nacional e horário nobre, fez um pronunciamento sobre a “escalada do obsceno e do pornográfico no país”. O discurso assustou muita gente, pois parecia avisar do retorno autoritário dos censores.

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Quanto às revistas pornográficas, o articulista informava, que mesmo nas mais liberais democracias da Europa, elas eram vendidas nos ambientes fechados das sex-shops, enquanto que no Brasil ficam grosseiramente expostas em qualquer banca de jornal.

Das revistas, a matéria passava às críticas sobre a TV. Apenas quatro dias após o pronunciamento do presidente a Record de São Paulo exibia em seu programa “Sala Especial”, a pornochanchada “Sob o domínio do sexo”. Lançava, também, a revista erótica “Internacional” em cujas páginas o leitor encontraria “coisas que nunca viu”. Programas como os seriados da Globo “Malu Mulher” e “Amizade Colorida”, por insinuar imagens do ato sexual, provocaram o “primeiro movimento organizado contra o relaxamento dos costumes no vídeo”: o das “Senhoras de Santana”.

Também a carga sexual de muitos anúncios de TV estava na mira. Para o então ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, “A televisão chegou a tal ponto que apresenta propaganda de cuecas em modelos vistos de frente e de costas, com todas as protuberâncias”. E o que dizer dos jornais, doravante, recheados de anúncios de “casas de massagens”, dando exemplos da “degradação moral da sociedade brasileira”? Num mesmo dia, havia 84 deles nos classificados do O Globo, 66 no Jornal do Brasil, 34 no Estado de São Paulo e 20 na Folha de São Paulo. No início dos anos 80, a pornochanchada começou a perder o fôlego devido à crise mundial da qual o Brasil não escapou. As salas de cinema esvaziaram-se. O modelo também se esgotou e começaram a desembarcar aqui, os filmes hard core americanos.

Mandados de segurança obtiveram, então, a liberação de dois filmes estrangeiros importantes – “Império dos sentidos”, considerado um filme de arte e “Calígula”. Abriam-se as portas para a invasão dos pornográficos que passaram a ser exibidos em salas especiais. Os filmes explícitos acabaram por desalojar a ingênua e maliciosa pornochanchada mais focada no desejo de transgressão do que na própria transgressão. Apoiadas num desejo que moralizava mais do que violava regras, o gênero era no fundo, conservador: não eram raros os filmes em que os protagonistas se deliciavam em intermináveis orgias, mas, em compensação, estavam sempre a procura do parceiro ideal ou da virgem para um compromisso mais sério. Enfim, nada mais parecido com as duas caras da sociedade brasileira…

– Mary del Priore.

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Pornochanchadas: atrizes que se tornariam famosas, como Vera Fischer.

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