Prostituição e doenças: os pecados que atraíam a “peste”

 

           Para Ferreira da Rosa, autor do Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, tão medonha quanto a varíola era a “bicha” ou febre amarela. Bicha, pois se fazia analogia dos sintomas da febre com as resultantes das mordidas de cobra peçonhenta. O veneno de uma ou de outra agiam em sete dias. Fazia-se urgente um “remédio preservativo e curativo”. “O mal da bicha fazia deserto de muitas cidades”, ou seja, trazia consigo mortalidade altíssima, levando consigo, pacientes e médicos. Mais tarde, o mesmo vocábulo passou a denominar as prosaicas lombrigas.

           A causa da peste que vitimou gente na Bahia e, depois, em Pernambuco seria, novamente, um fenômeno astronômico: um eclipse lunar observado em 1685, aliado ao desembarque de barricas de carne podre, oriundas da navegação negreira vinda São Tomé, teriam viciado os ares. Mas não só culpa dos astros. Os tumultos dos povos, as agitações sociais e os pecados dos homens, também influíam sobre a saúde dos povos. E segundo Ferreira da Rosa, pecados como a prostituição e os concubinatos atraíam pestes. Rocha Pitta confirmava: dois homens depois de jantar na casa de uma prostituta morreram em 24 horas! E de nada adiantou a procissão pelas ruas de Salvador com a sisuda imagem de São Francisco Xavier a 10 de maio de 1686. Já, em Pernambuco, preferiu-se invocar são Sebastião e são Roque. Mas, a bicha ignorou orações e seguiu mordendo…

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           Os tratamentos variavam. Iam de ventosas de casca de abóbora ou vidro a andar com “pomos aromáticos” feitos de âmbar ou pinho, nas mãos e no sovaco. Os doentes deviam estar sempre bem cobertos e com roupas limpas, defumadas com louro ou alecrim. O ideal era esfregar os dentes com alho, pela manhã. A dieta era a base de chicórias, doce de cidra e queijo duro. Insônia? Melhor tomar “infusões de ervas dormideiras”. Andar pouco, tomar pouco sol, evitar “paixões d´alma” tais como a melancolia, o ódio, a tristeza ou o temor da morte, comer pouco e nas horas certas eram forma de prevenção. Nada de fartura ou exageros!

          Quanto aos remédios, pílulas de erva-babosa, infusões de maracujá-mirim, óleo de escorpiões e raiz de angelicó já provinham do receituário local. Dor de cabeça? Bastava colocar “pombos mortos nas solas dos pés, abertos vivos pelo espinhaço e aplicado seu calor”. Nos pés? Sim, junto com o ânus simbolizavam as aberturas mágicas do corpo pelas quais os males eram drenados. Milagroso mesmo e receitado de Léry a Anchieta, de Gandavo a Cardim, era o óleo de copaíba. Considerado adstringente, sanava contusões, impinges, quebraduras, dor de dente, flatos e mordida de cobra. Fazia vir regras e expulsava febres. Conservava a mocidade e era, em suma, a quinta maravilha que Ferreira da Rosa encontrou no Brasil.

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             Mas seria certo pântano que se achava em Olinda, conhecido como barragem do Varadouro, a causa da bicha? Depois de solicitar um parecer ao médico que inocentou o poço sujo, o Governador Marques de Montebelo encaminhou à Câmara um regulamento em nome “dos inumeráveis mortos e quase infinitos ressuscitados” para sanear a cidade. Ele exigia a escolha de um Provedor de Saúde, a instalação de hospitais para recolher doentes dos “males”, o controle dos navios que chegassem ao porto, a limpeza obrigatória de casas, ruas e praias sob pena de multas e chicotadas, desinfecções com vinagre nos interiores, a obrigação semanal de acender uma fogueira com ervas cheirosas, a proibição de mulheres saírem sós, depois das Ave-Marias e, como não podia faltar num regime de polícia sanitária, a execução de uma lista com todas as meretrizes e sua “expulsão da cidade há dez léguas de distância”. Homens livres ou escravos que se encontrassem na companhia de tais mulheres, sofreriam pena de degredo.

             A severidade das penas e os custos da execução do regulamentou foram suficientes para que o Senado da Câmara de Olinda se negasse a aplicá-lo! Em sua raiz, porém, havia uma preocupação com fumigações fogueiras e aspersões aromáticas como prevendo que o problema estaria num mosquito. Mas, como de hábito, as autoridades se preocupavam, apenas, em enterrar os mortos.

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             Isolado em sua luta por melhor higiene, só coube ao marques de Montebelo registrar seu desapontamento: “Que importa toda a precaução e providência em prevenir a forma das sepulturas dos mortos, se para os vivos (quero dizer, os doentes do mesmo mal) não houve igual precaução ou providência”.

             Também sem conhecer o mosquito transmissor da febre, o governador de São Paulo, Martim Lopes de Lobo Saldanha, na primeira metade do século XVIII ordenou: “que se queimassem ervas perfumadas nos locais onde se encontrassem os atingidos pela peste amarela, e que grande quantidade de bois e carneiros fossem levados de cambulhada a percorrer ruas, a fim de com isso atraírem para eles, bichos, a maldita febre”.

  • Texto de Mary del Priore. “História da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016

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“A Inspeção Médica no Prostíbulo da Rue des Moulins (1894)”,  Henri de Toulouse-Loutrec. 

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  1. Marcelo Pedro de Arruda

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