Pesquisador descobre crônicas desconhecidas de Lima Barreto

O pesquisador Felipe Rissato, que estuda a obra de Lima Barreto, encontrou, em revistas, três crônicas desconhecidas do autor carioca. São textos veiculados na revista Theatro & Sport, em 1917, 1920 e 1921. O tema das crônicas é o teatro. Vamos publicar as crônicas aqui no blog, uma por dia. A seguir, uma breve apresentação:

Três crônicas de Lima Barreto “perdidas” na revista Theatro & Sport

por Felipe Pereira Rissato

Lima Barreto colaborou por quase duas décadas em inúmeras publicações. Efêmeras ou não, boa parte das revistas surgidas em princípios do século XX no Rio de Janeiro tiveram a tinta da pena do escritor impressa como letras tipográficas em suas páginas, numa abundante produção de contos e romances, mas, sobretudo, críticas e crônicas.
Sob pseudônimo (mais de vinte são a ele atribuídos) ou ainda sob a sua própria assinatura, a reunião integral de sua obra periódica está, ainda, por completar-se. A partir de 1956, num projeto que se estendeu até 1961, Francisco de Assis Barbosa, auxiliado por M. Cavalcanti Proença e Antônio Houaiss, editou as Obras de Lima Barreto (Brasiliense), em dezessete volumes; um trabalho pioneiro e fundamental para a consolidação da obra do autor carioca. Em 2004, quase meio século depois, portanto, foi lançado Lima Barreto: Toda Crônica (Agir), em dois tomos organizados por Beatriz Resende e Rachel Valença, mas ainda havia lacunas.

No ano de 2010, Lilia Moritz Schwarcz preparou os Contos Completos de Lima Barreto (Companhia das Letras) e, mais recentemente, veio a lume Sátiras e outras subversões: textos inéditos (Penguin-Companhia das Letras), de Felipe Botelho Corrêa. Mesmo com todo esse exaustivo levantamento, restavam ainda, esquecidas, três crônicas assinadas com o nome de Lima Barreto e publicadas na revista Theatro & Sport, entre novembro de 1917 e março de 1921, todas tendo o teatro como tema. A primeira delas, “O que queria o homem”, pode ser considerada um miniconto satírico. Conhecida do público, entretanto, é a crônica “Sobre o nosso teatro”, estampada na Revista Contemporânea em 1919 e na qual o escritor cita textualmente a revista Theatro & Sport:

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“Tenho dito muitas vezes que não vou a teatro. Isto é verdade. […].
Mas, como é que você não indo a teatro vai falar sobre teatro?
A explicação é simples. Sigo atentamente a vida dele pelas crônicas, pelas revistas especiais. Recebo a Comédia, que os meus amigos e camaradas M. Austregésilo e Autran têm a bondade de enviar-me; e sempre leio o semanário do Barreiros e Lino, Theatro & Sport.” (1)

Não apenas lia, como já havia colaborado no dito periódico em 1917. Curioso, aliás, é pensar que Lima Barreto integraria um órgão de imprensa também relativamente voltado para o esporte, como o próprio futebol, ferrenhamente atacado por ele em 1919, com a criação da Liga Contra o Futebol. Talvez isso explique o porquê desses textos estarem até hoje desconhecidos dos estudiosos de sua obra: quem os procuraria em uma revista com essa linha editorial?
Uma nova participação só se dará em junho de 1920, com a crônica “As caixas…”, numa certa aproximação empática com o teatro. A crônica é encimada pela seguinte nota:

“Volta a iluminar a modéstia das nossas colunas, com a sua prosa fulgurante e límpida, Lima Barreto – um dos mais fidalgos e valiosos espíritos da geração atual.” (2)

Meses antes, em fevereiro de 1920, quando o cronista havia recém tido alta do hospício, onde estivera desde o Natal de 1919, a publicação assim se manifesta de forma atrasada:

“Lima Barreto, o nosso brilhante colaborador, recolhido a uma casa de saúde, segundo um matutino, está escrevendo, lá mesmo, um romance, que deverá ser, como todos os seus, de grande valor.
Segundo esse mesmo órgão, está prestes o grande romancista nacional a ter alta, notícias que nos trazem a mais viva satisfação.” (3)

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A terceira e última crônica ali publicada é “Com toda a sinceridade”, na qual Lima Barreto assume o seu costumeiro papel de crítico social e do governo.
Quando o autor faleceu, em novembro de 1922, a revista assim se expressou:

“Faleceu quarta-feira última em sua residência, vítima de um colapso cardíaco, o escritor patrício Lima Barreto, […].
O morto, que contamos não poucas vezes como dos nossos mais lidos colaboradores, deixa várias obras, […].
Rendendo a devida homenagem à memória do pranteado morto, Theatro & Sport envia à família enlutada suas sinceras condolências.” (4)

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A primeira crônica que publicamos é “O que Queria o Homem” (5):

O secretário da empresa estava atrapalhado com as últimas operetas para “lançar” a companhia naquele populoso subúrbio da nossa cidade, quando lhe vieram dizer que uma pessoa lhe queria falar.
Apesar de atarefado, e muito, mandou que a fizesse entrar e tratou de ter paciência, para aturar algum autor local de revistas locais. Não os conhecia, mas esperava que não fossem gênios nem piores que os “revisteiros” centrais universais, d’aquém e d’além mar em África do Senegal e da Beócia.
O cidadão entrou acanhado e o secretário logo viu que o homem não era autor da localidade, especialmente dela, porquanto já tinha observado, na sua vida nômade de mambembeiro, que, quanto mais restrito é o campo de atividade intelectual em que um indivíduo pretende que age, mais este é vaidoso e presumido de si. O homem não era o poeta local nem autor de “revistas” locais, via se logo. Sentou-se e o secretário também, após os cumprimentos.
— Que desejava o senhor?
— Sr. doutor…
— Não sou.
— Desculpe-me… Eu queria, meu caro, senhor… Eu queria… O senhor sabe: sou pobre, tenho filhos e…
— Trabalha em teatro?
— Nunca trabalhei, mas gosto muito… A mulher então! nem sem fala! As crianças também… O Manduca tem muita queda e a Sylvia ainda mais… Na festa do meu chefe, ela recitou um monólogo que parecia uma atriz… Eu tenho medo até…
— De que?
— De que?!… Isto é… Bem… Mas… Não lhe ofenderei? penso eu…
— Espero que não.
— O medo que tenho, é que ela venha a ser atriz.
— Não seja por isso, meu amigo. As mulheres só mostram gosto, e muito, para isso, depois de velhas.
— Como? Como é que eu vi outro dia aquela na Cabana do Pai Thomaz, tão moça e bonita? (6)
— São segredos delas e nossos, meu caro. Mas… o que é que o senhor queria?
— Eu, querido senhor; eu queria que o senhor me facultasse, a mim e a minha família assistir aos espetáculos da sua companhia.
— Isso é com a bilheteria…
— Paga-se?
— Por certo.
— Não posso, meu caro. Gosto muito, mas não posso.
Levantou-se e saiu, depois de despedir-se.

LIMA BARRETO

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Notas do pesquisador:

1) Revista Contemporânea, Rio de Janeiro, ano II, n. 17, 15 mar. 1919.
(2) Theatro & Sport, Rio de Janeiro, ano VII, n. 292, 12 jun. 1920.
(3) Theatro & Sport, Rio de Janeiro, ano VII, n. 272, 7 fev. 1920.
(4) Theatro & Sport, Rio de Janeiro, ano IX, n. 417, 4 nov. 1922.(5) Theatro & Sport, Rio de Janeiro, ano IV, n. 158, 3 nov. 1917.
(6) Refere-se à atriz Davina Fraga (1890-1985), que em maio daquele ano encenou pela Companhia Barbosa & Marzullo, no Teatro Carlos Gomes, no Rio, o drama abolicionista Cabana do Pai Thomaz (Uncle Tom’s Cabin, 1852) da norte-americana Harriet Beecher Stowe (1811-1896).

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Revista Theatro & Sport. Anno X. Nº 448. 1923

Revista Theatro & Sport. Anno X. Nº 448, de 1923
(reprodução). Imagem apenas ilustrativa.

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