Marcas da violência: os rejeitados pela sociedade

Por Márcia Pinna Raspanti.

         Após ter sido acusado de tentar furtar uma bicicleta, um rapaz teve sua testa tatuada pelas supostas vítimas, no ABC paulista. O caso teve ampla repercussão, chocando muita gente. Por outro lado, muitos apoiaram o castigo, afinal “furto é crime”, dizem. A mídia tem revelado alguns detalhes ainda mais chocantes: o garoto, que nega a tentativa de roubo, tem problemas mentais. Conhecido no bairro onde mora, não tem histórico de violência e é bastante querido, segundo depoimentos de vizinhos e família. As investigações ainda não foram concluídas. O que me chamou atenção, contudo, foi forma de punição utilizada, e o próprio perfil do rapaz.

        As pessoas mais vulneráveis são sempre as escolhidas para serem bode expiatório das nossas mazelas. Sim, estamos todos cansados da violência da sociedade brasileira e da falta de iniciativas eficientes do Estado. Mas quando a turba enfurecida resolve tomar a justiça pelas próprias mãos, são sempre as pessoas mais frágeis (e não os criminosos mais perigosos) que são linchados, torturados, assassinados. Há poucos anos, uma mulher foi linchada no Guarujá, acusada de pertencer a uma seita que sacrificava crianças. Ela era inocente e tinha problemas mentais.

        Ao longo da História percebemos que a vingança “social” é geralmente direcionada aos excluídos e rejeitados, pessoas marginalizadas por sua aparência, condição física e mental ou pobreza extrema. Moradores de rua são queimados e agredidos, viciados em drogas são tratados como criminosos, mendigos morrem de frio pelas ruas, presidiários são assassinados em massa. E assistimos a tudo isso meio anestesiados, como se tais violências não acontecessem com seres humanos como nós.

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         Na Idade Média, os “defeitos” físicos ou mentais eram vistos como indício de pecado. E ainda hoje, aqueles que fogem de nosso padrão de perfeição são vistos com desconfiança. Lília Ferreira Lobo, em “Os infames da História- pobres, escravos e deficientes no Brasil”. explora o material produzido pelas Visitas do Santo Ofício analisando casos tão surpreendentes quanto o de Brites Fernandes de Camaragipe, aleijada e mentecapta, perseguida e condenada por deficiência mental. “A idiotia, nesses tempos, era vista como um defeito moral. Mais eloquente do que a Inquisição foi outro tribunal: o da eugenia. Esse perseguia ‘negros tolos’, onanistas, pederastas, cegos, surdos-mudos, prostitutas e jovens delinquentes. A utopia de uma sociedade organizada e produtiva, constituída só por exemplares perfeitos da espécie humana, estava em curso com o apoio de renomados médicos do século XIX. Os remédios? Esterilização, extermínio, embranquecimento”, resume Mary del Priore.

          O historiador Jacob Gorender, em “Combate nas Trevas” -, obra que analisa a luta armada durante a ditadura militar-, afirma com amarga ironia:

Se houvesse prêmio Nobel para os torturadores, estou certo de que os suecos seriam atentos às credenciais dos candidatos brasileiros. (…) Talvez o pau de arara não tenha sido inventado no Brasil, porém se nacionalizou mais do que o futebol. (…) O processo de imobilização do pau de arara já era utilizado pelos feitores de escravos há dois séculos“.

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         Certamente, os escravos sofreram sevícias e castigos físicos violentos de inúmeras formas. Tanto que os religiosos procuravam aconselhar os senhores a evitar excessos na hora das punições. Vejamos o que dizia o jesuíta Jorge Benci (1700):

“(…) Tiranizados devera dizer, ou martirizados; porque ferem os miseráveis, pingados, lacrados, retalhados, salmourados, e os outros excessos maiores que calo, mais merecem nome de martírios que de castigos”.

        Um dos aspectos mais cruéis da tortura é deixar marcas exteriores, que mostrem a todos as “faltas” cometidas pelas vítimas. O jesuíta Antonil, ou João Antônio Andreoni, em “Cultura e Opulência do Brasil” (1711), advertia:

“Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis e chegar talvez aos pobres com fogo o com fogo ou lacre ardente, ou marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre os bárbaros, muito menos entre cristãos católicos”.

         Marcar o rosto ou corpo com ferro quente, mutilar, cortar, tatuar – tudo isso, além da dor física, ainda traz humilhação pública à vítima. Toda vez que alguém olhar para ela, verá as marcas de suas faltas ou pecados. Gilberto Freyre nos conta como as senhoras se vingavam das escravas atraentes:

“Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas judiarias. O motivo, quase sempre, o ciúme do marido”.

Jean-Baptiste Debret descreveu, horrorizado, a tortura de um escravo no século XIX:

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“(…) O infeliz depois de ter ficado com as mãos amarradas, sentou sobre os calcanhares, passando os braços por fora das pernas, para permitir que o feitor enfie sob suas panturrilhas um pau que serve de entrave; em seguida, facilmente derrubada com um pontapé; a vítima mantém uma pose imóvel que propicia o feitor a saciar a sua ira (…). As duas tiras de couro da ponta do chicote arrancam no primeiro golpe a epiderme, e assim tornam mais dolorosa a continuação do castigo”.

        As cicatrizes permanecem. No rosto dos supliciados e na sociedade, que continua trocar a justiça pela vingança, quase sempre atingindo os mais fracos e aqueles considerados “indesejáveis”.

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

 

 

Foto de 1863 de Gordon, um escravo açoitado, nos EUA.

 

3 Comentários

  1. JAIRO BRAZ DE SOUZA
  2. Antônio Cardoso da Silva
  3. valdelis

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