Parir com dor

Atualmente, há uma grande discussão no Brasil sobre a melhor forma das mulheres darem à luz: parto normal ou cesárea? Afirma-se que, muitas vezes, as mães são quase que obrigadas a passar pela solução cirúrgica, por razões mais econômicas do que médicas. Em meio à tanta polêmica, vale a pena conhecer um pouco mais sobre os partos do passado.

Uma das obrigações da mulher era redimir o erro cometido por Eva: “devem sofrer com paciência as incomodidades da prenhez e as dores do parto, como pena do pecado”, explicava o padre Arceniaga no século XVIII. E esse sofrimento era tanto individual quanto coletivo, pois esses eram tempos em que um nascimento mobilizava toda uma comunidade. A vizinhança, a família e as comadres cercavam a parturiente para encorajá-la, ajudá-la e sossegá-la. Quase não havia médicos na colônia, e o parto era “coisa de mulheres”; homens não podiam ver-lhes o corpo nu. Os maus partos se anunciavam por sinais: “dor aguda na cabeça, falta de vista, vacilação de juízo ou ligeiro delírio”. Se a parturiente apresentasse pulso acelerado, suores frios e desmaios, era sinal de “morte certa”. Os bons partos anunciavam-se pela “bulição da criatura no ventre”.

Mães viviam o momento do parto imersas em insegurança material e afetiva, sem proteção para as dificuldades. Nada de remédios nem de anestésicos. Para bem parir, tomavam-se caldos de galinha com lascas de canela. Devidamente alimentada e em repouso, a parturiente esperava “lançar umidades”. Havia duas boas posições: de pé, com as pernas afastadas e curvadas, apoiada num móvel, ou de joelhos, no chão. Nada de gesticular ou caminhar para não desperdiçar forças. Quando deitadas ou sentadas, exaustas por causa do esforço, podiam ser socorridas por comadres e parteiras. A posição horizontal significava a ajuda mútua que cercava a mulher caso estivesse acompanhada. Já o agachamento seria a posição ideal para as gestantes que estivessem sozinhas. Quantas mulheres, trabalhando no campo ou percorrendo caminhos, se acharam na posição instintiva em que podiam ao mesmo tempo controlar o períneo e receber os filhos, ajudando a empurrá-los para fora?

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A comadre, as mãos embebidas em azeite de amêndoas ou gordura de galinha, ia “governando a criança”. Ela tinha cuidados psicológicos: ministrava bebidas à parturiente, além de palavras agradáveis, prometendo-lhe o “feliz e venturoso nascimento de um varão”! Era eficiente na ajuda mecânica da prensa abdominal, e de fricções e pressões exercidas no baixo-ventre com a finalidade de favorecer a expulsão do feto.

Se o quadro se complicasse, recitavam-se orações a Nossa Senhora do Bom Parto. Retalhos bentos e escapulários eram passados sobre a barriga. Por vezes, as mulheres eram colocadas em grandes lençóis e sacudidas no ar. A ideia era fazer o fruto desprender-se. Remédios para minorar a dor? Os tradicionais: “esterco de cobra”, untar a sola dos pés com cebolas cruas ou mastigá-las, amarrar na coxa direita um fígado fresco de galinha, soprar numa garrafa e invocar santa Margarida, ingerir chá de barba-lavada ou leite de cadela.

Períneos rasgados pela manipulação excessiva empreendida pela parteira, excesso de óleos, uma posição fetal mais complicada podiam alterar o ambiente. O maior perigo era o de retenção da placenta no útero: “apodrece e é causa de muitos acidentes”, queixava-se um médico. Para evitar: “meter a mulher em cama quente e quarto abrigado… o cordão umbilical se atará à curva da perna e à roda deste se enrolarão panos molhados em cozimento de alecrim, manjerona e poejos, arte que por si a placenta se extrairá”, recomendava o doutor Afonso e Melo no século XVIII.

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No joelho esquerdo da parturiente era amarrada uma pedra chamada de “Mombaza”, encontrada em Minas Gerais, cuja função mágico-religiosa era a de atrair a criança para fora da barriga da mãe. Preces endereçadas a são Mamede, são Francisco e santa Margarida eram murmuradas, baixinho, a fim de afugentar qualquer perigo que pusesse em risco a vida do nascituro. Os gritos de “força, fulana, força”, acompanhados de vigorosa massagem abdominal, incentivavam a expulsão. A criança vinha ao mundo entre preces, gritos de dor e alegria.

A parteira, além de “aparar crianças”, era benzedeira: recitava palavras mágicas para ajudar a mãe, fazia abortos, era cúmplice de infanticídios, facilitava o abandono de crianças ou as encaminhava para famílias, que as absorviam. Era uma figura poderosa na comunidade feminina, vivendo na fronteira entre a vida e a morte.

Grandes riscos corriam as parturientes, muitas delas vítimas de sangrias que se realizavam habitualmente durante o trabalho de parto. Sangramentos somados a hemorragias uterinas eram o risco mais imprevisível pelo qual passavam as mulheres, levando-as ao esgotamento e mesmo à morte. Marcada por síncopes, entrecortada por convulsões e gritos de sofrimento, essa forma de morrer, esvaindo-se em sangue, lembrava uma espécie de rito sacrifical em que a mãe dava a vida pelo filho.

O parto marcava-se pela imagem de sofrimento da mãe – era preciso sofrer para dar à luz. Inaugurava-se um processo de créditos do qual o filho seria o eterno devedor, fadado a pagar com trabalho e afeto o nascimento entre dores. A Igreja encontrava nessas imagens a justificativa mesma do pecado original.

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Quanto aos médicos, não se incomodavam em revelar o mais absoluto desconhecimento sobre a matéria. Um deles, o já citado Francisco de Melo Franco, explicava: “Chegado o nono mês, entra o útero a contrair-se; seguem-se as dores e por uma força mecânica, a criança, rompendo as membranas que a encerra, é expelida do ventre materno… Querer indagar a causa por que só no fim deste tempo a natureza promove o parto é perder tempo em coisa de nenhuma utilidade, na certeza de que no fim, estaremos mais longe da verdade do que no começo”. – Mary del Priore

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“Madonna e criança”, de Pompeo Batoni.

2 Comentários

  1. Sonia Mara N Brigido

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