O pensamento mestiço

               Serge Gruzinski é um dos raros acadêmicos franceses a se interessar pelos trópicos, mais especialmente pelo México, cuja história vem lhe inspirando livros notáveis sobre o encontro entre Europa e América. Um exemplo dessa produção? Não se pode compreender os primórdios da América espanhola, sem ler seu clássico A colonização do Imaginário, reflexão aguda sobre o manejo de imagens da Igreja Católica e a apropriação que delas era feita pelos índios no século XVI.

               Pano de fundo para estudos sobre a chegada do “magnífico almirante do mar oceano”, Cristóvão Colombo ao continente, o tema da mestiçagem vem instigando historiadores a pensar a decisiva passagem da experimentação à realidade, do imaginário à matéria, do nós – europeus – aos outros – americanos. O choque foi inevitável dando início, por um lado, ao altericídio e por outro, ao encontro de corpos e de culturas. Indígena, africana, multiplamente europeia, pois cristã, judia e islâmica, a comunidade ibérica, como diz Carlos Fuentes, mestiça e mulata, anunciou, ontem, a natureza e os problemas do mundo de amanhã. Explorado com enorme competência por Gruzinski, o tema ganha vida e plasticidade uma vez que o fio condutor do livro é a ideia de que a mestiçagem não é uma essência fechada, mas um recurso permanentemente forjado e reinventado, recurso, sublinhe-se, adotado e simultaneamente construído pelos diferentes grupos humanos.

               O pensamento mestiço – “jeu de mot” com O pensamento selvagem de Lévi-Strauss – divide-se em três partes. Na primeira, “Misturas, caos e ocidentalização”, o autor explora questões teóricas fundamentais. Mestiçagem, tal como cultura, hibridismo, mistura ou identidades são conceitos que vem sendo utilizados, para o bem ou para o mal, sem muitas distinções. Algumas vezes, até em “situações díspares”.“Na verdade – explica o autor -, todas as diferenças terminológicas traduzem mal a complexidade das situações e sua variabilidade”. Eis que, ao desconstruir a linguagem, Gruzinski revela a fragilidade e o desgaste de certos conceitos, lembrando, por exemplo, que “para apreender as misturas, é preciso começar desconfiando do termo cultura, gasto até a sola por gerações de antropólogos, sociólogos e historiadores”.

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              Esgrimindo com Bastide, Ballandier ou Amselle – o novo papa francês dos estudos sobre a questão – não se furta às merecidas estocadas no “politicamente correto”. Sua inteligente sugestão é a de relacionar mestiçagem e aculturação: “os elementos opostos das culturas em contato tendem a se excluir mutuamente; eles se enfrentam e se opõem uns aos outros; mas, ao mesmo tempo, tendem a se interpenetrar, a se conjugar, a se identificar”. Ao cabo da primeira parte, ele nos oferece suculentos exemplos de como a ocidentalização provocou tensões, desordens e perturbações que foram, por outro lado extremamente criativas. O virtuoso mimetismo dos índios se refletia, para dar alguns exemplos, na fabricação de trombones de vara a partir de candelabros, na cópia caligráfica tão perfeita que fazia os europeus pensar que estavam diante de impressos e, até na venda de sambenitos pelas ruas – o boné pontudo usado pelos condenados pela Inquisição visto como adereço de moda – aos gritos de “Tocohuanezqui benito?” (“quer comprar um Benito?”).

              Na segunda parte, “As mestiçagens da imagem”, Gruzinski comprova a eficiência de seus conceitos, mostrando que aos olhos dos índios, a ornamentação e as figuras maneiristas podia substituir a arte cristã, além de abrir portas para revisitar o repertório que lhes era próprio: macacos inspirados de iluminuras medievais eram lidos como ozomatli, figura do calendário divinatório dos naua, associado à boa fortuna; flores europeias eram substituídas pela ololiuhqui, poderoso alucinógeno, As metamorfoses de Ovídio, publicadas, em 1577, no México, permitiam a aproximação entre os deuses nauas e as figuras mitológicas: Hércules como Huitzilopochtli e Tlazolteolt, como Vênus. Debruçando-se sobre a invasão das representações ocidentais em manuscritos pintados e afrescos de conventos, o historiador desvela a guerra das imagens cristãs contra os ídolos indígenas, além de articular incansáveis exemplos pictóricos e literários capazes de confirmar que, se os conhecimentos clássicos cruzaram o Atlântico a bordo das embarcações espanholas, o fizeram para desencadear saberes novos. Saberes, porém, mestiços.

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            Na terceira parte “A criação mestiça”, o leitor é arrastado para o interior de oficinas indígenas nas quais se fabricavam imagens e textos. Imagens e textos que como explica o autor, são o “produto do encontro e do enfrentamento, não de duas culturas – o termo é vago demais – mas, daquilo que chamaremos, de forma ainda insatisfatória, dois modos de expressão e comunicação”. A combinação de palavras, cores, formas e conceitos são extremamente requintados. A luz divina tão presente na Transfiguração, banha o além-túmulo ameríndio e o papa romano porta o báculo e uma zarabatana de turquesa, numa alusão a certa dança onde se homenageava a alma dos guerreiros mortos. “A Roma dos papas indigeniza-se à medida que o além dos índios se cristianiza”, resume. Notável é o domínio de fontes e métodos demonstrado por Gruzinski nos capítulos que se sucedem. Exemplos extraídos da pintura, da cartografia, da poesia e da crônica produzida no México, ilustram teses que se apóiam ainda, num profundo conhecimento de suas congêneres europeias e – espantoso!- da língua naua.

           O que é absolutamente pioneiro nessa obra é a desmontagem realizada por Gruzinski da ideia de mundialização como algo recente. Comparando produtos culturais, pinturas, obras literárias ou música, ele revela que esse é um processo plurissecular. Ele tem início no distante século XVI, momento em que as viagens ultramarinas abriam as vias para um desvendamento, ou melhor, para um despegamento do mundo. As ligações entre mercados antes inacessíveis, a colonização como instrumento de tensão, a evolução das trocas e dos transportes comprova que desde então, nenhum povo podia viver em autarquia ou ignorando a presença do Outro. Doravante, seus destinos estariam, inextricavelmente ligados. Mesmo os fenômenos de rejeição que observamos hoje, não teriam caráter de novidade. A atual expansão dos fluxos de comunicação ou financeiros seriam os últimos avatares de um longo processo.

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           Diferentemente de Lévi-Strauss que declarava sua raiva de viagens, Gruzinski percorre a Amazônia, o México ou o Brasil com comovente paixão. Rompendo com a narrativa tradicional, ele constrói seu texto com erudição e abundantes informações que vão de Aby Warburg a Peter Greenaway, de Wong-Kar-wai a Win Wenders. Diálogos com o cinema e a literatura contemporânea, raros em livros de história, só dão maior musculatura a seu conceito de “mestiçagens”. Sob títulos saborosos, os capítulos formigam de novidades enquanto sua bagagem de viagem inclui ainda uma iconografia inédita, prejudicada, infelizmente, pelo xerox enviado pela editora ao resenhista. Diferentemente de colegas que ao estudar o Novo Mundo garimpam documentos confortavelmente instalados nos arquivos, Gruzinski, os vêm caçar pessoalmente na paisagem americana; em Puebla, Acolman ou Ixmiquilpan. Com a virtuosidade de um camaleão, ele se transporta de Algodoal, no Pará, à Chiapas, de Quito à Roma. Ele “vê” e se vê na América. Nesse continente onde a arquitetura, a linguagem, a escultura e a pintura são vivas, pois cheias de múltiplas funções e sentidos, autor e obra demonstram que “a mestiçagem não nos autoriza respostas definitivas”.

           Recusando ferozmente a abordagem do exotismo ou a dos “cultural studies” das escolas americanas, Gruzinski nos convida a pensar as mestiçagens, no plural. Ou seja, a nos pensar. Convite, no caso desse livro, fascinante e irrecusável.

  • Texto de Mary del Priore

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Serge Gruzinski: “O Pensamento Mestiço”, Companhia das Letras, 2001.

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