O “jeitinho” brasileiro

O que se assistiu nos três primeiros séculos da colonização foram fluxos e refluxos humanos, sobretudo masculinos, a desafiar a pressão organizadora e moderna do Estado português. Nesta convulsiva mobilidade, as condutas individuais em colônias, ao
contrário de refletirem a noção de privacidade do eu, espelhavam a disponibilidade
sexual contaminada pela exploração sexual contida no escravismo, o amolengamento
moral, o desfibramento espiritual. Homens e mulheres bracejavam no que
Prado Júnior chamou sisudamente de “falta de nexo moral” e “irregularidade de
costumes”.

Nem tanto assim… Havia, certamente, uma lógica própria desses tempos de
povoamento nos tais comportamentos avessos aos ditames europocêntricos e
tridentinos. Havia, portanto, um ruído, uma dissonância a intervir na sinfonia da
civilização dos mores. Homens e mulheres de raças, credos e condições sociais diversas apenas tentavam adaptar suas sensibilidades, crenças e comportamentos às
condições que se engendravam no cotidiano da Colônia, inaugurando uma prática
criativa, de linhagem arcaica no Brasil: a do ‘jeito’.

Só que essa adaptação, esse amoldamento, que inclusive passava pela centripetação
de culturas diferenciadas, não correspondia ao projeto de exploração determinado
pelo sistema colonial português. Este só vicejaria com maior eficiência
mediante o adestramento social da população na Colônia, adestramento que deveria
orientá-la para o trabalho organizado e produtivo.

A serviço do Estado, a Igreja metropolitana foi mentora desse projeto, podendo
desenvolver também os compromissos reformistas estabelecidos no concílio de
Trento. Assim sendo, adequar as necessidades de povoamento à devoção mariológica
deve ter significado uma concreta hipótese de trabalho para a normatização das
populações femininas. Confinada à casa, delimitada pela privacidade doméstica,
a mulher no papel de santa-mãezinha poderia fazer todo o trabalho de base para o estabelecimento do edifício familiar, para a reprodução dos ideais tridentinos e para a procriação de brasileirinhos.

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Além disso, vigiada pelos olhos atentos de tantas nossas senhoras e virgens
queridas, a mulher teria na piedade marial uma fonte permanente de inspiração e de
modelos de comportamento, e a devoção doméstica incentivaria ainda a que essas
imagens, tratadas como entes queridos ou familiares, parecessem extremamente
diligentes em relação a qualquer pecadilho acontecido dentro de casa.

Assim se daria o controle do invisível sobre o visível na vida cotidiana de tantas
mulheres, cujos companheiros participavam, de forma ambulante, do processo de
colonização e povoamento da Colônia. Sós, solitárias ou deixadas para trás, elas tinham
que escolher entre tomar-se uma santa-mãezinha, integrando-se ao sistema, ou viver
com o estigma da mulher ‘sem qualidades’, e, por isso, demonizada e excluída.

– Mary del Priore (“Ao Sul do Corpo”).

Descobrimento do Brasil

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