O divórcio de Domitila

      Pelas leis da Igreja, o matrimônio devia garantir estabilidade, funcionando como uma entidade organizada e incumbida de certas funções sociais. Se tensões graves se estabeleciam entre os cônjuges, cabia ao Juízo Eclesiástico mediar separações ou a coabitação. E o problema atingia a todas as camadas sociais. Pois uma aliança não era só morada de doçura e proteção mas espaço de confrontação e de todos os incêndios. Que o diga o requerimento dramático enviado por Domitila a D. João VI. Nele, afirmava que seus pais a tinham “feito casar” com Felício e que este, mal chegado a Ouro Preto, submetera-a a seu “péssimo gênio e depravados costumes, atentando até contra a vida da suplicante”. O fidalgo escondia um monstro. Ele a seguira de volta, até São Paulo, “com protestos de amizade”. Os pais a convenceram a voltar aos braços do marido.

As consequências? Sevícias caseiras, desordens e até falta de “camisa para vestir-se e aos seus filhos”. Felício devia a todo mundo, vendeu o próprio uniforme, falsificou a assinatura da esposa para vender bens, tentou arrancar
dinheiro da Pagadoria das Tropas, “acabou em más companhias nas casas de jogo, chegando até a levar seus filhos pequenos para casas indecentes”, “tudo consumiu”. Inclusive a paciência da mulher. Nas duas primeiras décadas do século, separações e anulações de casamento foram encaminhadas à Cúria Metropolitana de São Paulo. Só no ano
de 1819, foram 16. A do casal entre elas. As alegações eram subjetivas e, em muitos casos, apresentavam os argumentos mais adequados para que fossem aceitos pelas normas da Igreja Católica: sevícias, ameaças de morte, adultérios, abandono de lar, injúria grave e doenças infecciosas. As que mais mereciam atenção e compreensão do bispo se referiam aos atentados à moral e aos costumes.

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O adultério ou quebra de fidelidade matrimonial era considerado falta grave para ambos os sexos, porém colocava a mulher numa situação inferior do ponto de vista jurídico. O antigo direito português punia o adultério com pena de morte tanto para a mulher casada quanto para seu amante. Mas, o do marido, não merecia tão grave repulsa por parte do velho código filipino: infidelidades transitórias não eram consideradas graves. Só os “barregueiros”, os que viviam em concubinato estável, eram passíveis de degredo. O mesmo estava previsto na legislação civil. Na verdade, sevícias, adultério, má gestão dos bens, tudo era usado quando se tratava de incompatibilidade entre os pares. Difícil era detectar a origem dos conflitos ou sua real dimensão.

Não se conhecem, portanto, as razões que teriam levado Felício a esfaquear a esposa, numa manhã em que ela se dirigia para a casa da prima. Possuir, dominar, devorar, incorporar… por fim, matar. A violência patriarcal
fazia parte das reações masculinas para lavar a honra manchada. O que Felício saberia sobre Domitila? Ele a esperou numa esquina. Eram sete horas da manhã. Esfaqueou-a no baixo ventre e nas coxas. Ela estava grávida. Dele? Corriam rumores sobre a jovem e D. Francisco de Lorena, adido ao Exército do Brasil como integrante de
seu Estado-Maior. Um colega de farda – o que transformava os cornos de Felício num problema maior. Rumores corriam na cidade. Tinham sido vistos na fonte de Santa Luzia, próxima à chácara do oficial. Com a faca manchada de sangue, o marido correu para a casa de amigos. Pensou ter matado a mulher. Desesperou-se. Quando Domitila deu à luz o pequeno João, cuja vida foi efêmera, já estava restabelecida dos ferimentos. O crime não ficou impune e ele foi encarcerado por três meses. Contudo, salvou a honra. Mais três meses e pediu para ir ao Rio de Janeiro, tratar de “dependências de sua Casa”. Sair de cena: uma boa iniciativa. Ficaram, porém, as cicatrizes no corpo.

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       A separação do casal foi o assunto que aproximou Pedro e Domitila. Inúmeras requisições encaminhadas a D. João VI não foram cumpridas pelo então governador de São Paulo. Poucas vezes um divórcio foi requerido, assentado e concluído tão rapidamente. De esfaqueada, abandonada e vulnerável, ela passou a “teúda e manteúda”. No dia 4 de março de 1824, teria início o processo. E, no dia seguinte, monsenhor Francisco Corrêa Vidigal reconheceria oficialmente os maus-tratos.

Durante o processo, choveram acusações ao marido: ameaçava-a de morte e dormia com facão sob o travesseiro, mantinha amante “em pública mancebia”. Felício, um monstro? Segundo alguns cronistas, o marido não deu
sinal de si, nem apresentou defesa. No dia 9, assinou-se a sentença em favor da queixosa. A justiça eclesiástica trabalhou a passos largos, auxiliada por provas irrefutáveis: as duas facadas e as duas filhas bastardas de Felício. Ele também abriu mão do pátrio poder. O prêmio de consolação para o ex-marido foi sua nomeação como administrador da feitoria de Periperi na mesma localidade de Marapicu. Resignou-se. A 21 de maio de 1824, a sentença seria exarada em favor de Domitila.

  • “A Carne e o Sangue”, de Mary del Priore. Editora Rocco, 2012.

O divórcio aproximou Domitila de D. Pedro.

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