O Bota-Abaixo: “o Rio civiliza-se!”

           Rodrigues Alves, o quinto presidente do Brasil, eleito em 1902 com apoio das elites de São Paulo e Minas Gerais, fora também presidente da província de São Paulo, cuja capital reurbanizara. Lá ele trocou lampiões de gás por luz elétrica, abriu largas avenidas e instalou uma rede de esgoto. Agora, seria a vez da capital. O Rio de Janeiro de vielas imundas, ruas estreitas e campeão de epidemias, precisava se renovar. Segundo o presidente eleito, “A capital da República não pode ser apontada como sede de vida difícil, quando têm fartos elementos para constituir o mais notável centro de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo”.

           A 29 de fevereiro de 1904, Rodrigues Alves partiu para a ação, deflagrando uma revolução urbana cujo centro era a abertura da Avenida Central, hoje, Avenida Rio Branco. Em nove meses, 614 imóveis foram postos abaixo “sob o hino jubiloso das picaretas regeneradoras”. O projeto exigia que os prédios tivessem fachadas e projetos previamente aprovados. Remodelou-se, também, a Rua do Ouvidor e a Avenida Beira-Mar, revelando a beleza da orla, pouco aproveitada. O porto da cidade ganhou 52 novos armazéns, foi aberto o túnel do Leme e iniciada a construção da Avenida Atlântica, as comunicações entre a cidade e os então subúrbios do Flamengo e Botafogo se multiplicaram e praças foram embelezadas. E se impuseram normas de civilidade: tornou-se proibido cuspir no assoalho dos bondes. Proibida a circulação de vacas, porcos e cães vira-lata pela cidade. Proibida a exposição de carne na porta dos açougues. Proibido o desfile de blocos de carnaval sem autorização. Enfim, proibidos os costumes “bárbaros e incultos”.

            A beleza da paisagem urbana, entre serras e mar fez surgir no Carnaval de 1904 a marchinha: “Sem igual no mundo inteiro / Cidade Maravilhosa / Salve o Rio de Janeiro”. A gente da capital que desde o século XIX sonhava com a França, comia e vestia-se à francesa, agora, poderia viver num Paris à beira-mar! Civilização, enfim, entre luz, águas e granitos! A cidade emoldurava a natureza e essa, graças às renovações urbanas, se curvava ao progresso.

           Quase um ano depois, era a vez de Olavo Bilac, inimigo de Floriano Peixoto, poeta, ativo republicano e nacionalista, descrever na Gazeta de Notícias ao que assistia enlevado:

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O meu bom povo, o povo da minha linda e amada cidade está delirante. Delirante, não digo bem: o delírio é bulhento, é espalhafatoso, é vibrante; e tereis notado que, na Avenida, ainda não houve um grito alto de triunfo e de jubilo, uma dessas aclamações frenéticas em que a alma popular se abre chispando e estrondando em girândolas…

Delirante, não: o meu bom povo está estatelado de jubilo e de espanto, — está presa de uma dessas comoções embatucadoras, que, ás vezes, secam a garganta, fazem todo o sangue refluir para o coração, e concentram toda a vida nos olhos da gente. O seu silencio não é frieza: é excesso de alvoroço moral.

[…] O meu bom povo está como essa criança.

Que é o que lhe haviam dado os governos até agora? Impostos e pau; ruas tortas e sujas; casas imundas… e ás vezes atravessadas por balázios; estados de sitio e bernardas; febre amarela e tédio…

Ele, o deserdado, não se queixava. Lá, diz Perrault, no seu conto imortal, que a Gata Borralheira passava as noites olhando o borralho, sem esperança e sem revolta, como quem sabe que só veio ao mundo para trabalhar e sofrer… Assim o povo carioca, resignado, ia vivendo a sua vida triste, habituado ao vasto persigal que lhe davam por morada, sem outro ideal que o de comer duas vezes e trabalhar dez horas por dia, com o só divertimento de politicar um bocadinho e a só comoção de arriscar todos os dias dez tostões na cobra ou no peru…

E eis que, de repente, alguém lhe tapa os olhos, e leva-o assim vendado a certo lugar, e retira-lhe a venda, e mostra-lhe uma avenida esplendida bordada de palácios, e cheia de ar e de luz, — e diz-lhe: Recebe isto, que é teu! Folga e regala-te!  Teve um fim o teu aviltamento, e começas a ter o que todos os outros povos já têm: um pouco de decência na tua casa, e um pouco de ventura na tua vida! E o povo esfrega os olhos, belisca-se para verificar que está bem acordado, sacode-se, desmandibula-se de pasmo, começa a embebedar os olhos com aquelas maravilhas, e não acaba de perguntar a si mesmo se tudo aquilo é realmente seu, e se aquele paraíso não é uma cenografia de papelão e gaze, que o primeiro pé de vento vai esfarrapar e destruir. Assim ficou a Gata Borralheira, quando lhe entrou á cozinha a Fada Bondosa, e, com um golpe, da varinha mágica, lhe mudou os andrajos sórdidos em alfaias de seda e ouro.

O meu bom povo não está delirante, não, – que ainda não voltou a si da surpresa. Porque aquilo foi uma surpresa, — uma como obra de encantamento e feitiço. Enquanto a Avenida estava atulhada de pedras e andaimes, com os seus palácios cobertos de tapumes, e cheia do formigueiro dos operários, ninguém a atravessava de ponta a ponta, ou sequer de quarteirão a quarteirão. A gente, passando pelas vielas transversais, dava à direita e à esquerda um olhar distraído, e ia andando o seu caminho, murmurando: não é que a Avenida progride? — Ou não murmurando coisa nenhuma, e nem fixando a atenção no milagre que ali se operava.

Mas, no dia 15, foi como se um, velário se abrisse, descobrindo uma região de sonho. Os olhares, mergulhando na Avenida, pasmavam diante da sua prodigiosa amplitude. As ruazinhas, que outrora nos pareciam tão largas, estreitavam-se, afunilavam-se, espremiam-se, entre os palácios das esquinas: e eu, por mim, querendo entrar à rua do Rosário, fiquei parado, hesitando, inquirindo de mim mesmo se o meu corpo poderia passar pela abertura augusta daquele cano…

Por todo aquele dia e por toda aquela noite, o povo debaixo das cordas de água que caiam, resistindo heroicamente á flagelação da chuva grossa, […] Na umidade, ficou ali, indo e vindo de boca aberta, olhando os prédios, sem acreditar no que via, – pobre desconfiado de tão grande esmola.

[…] E, pela Avenida afora, acotovelando outros grupos, fui pensando na revolução moral e intelectual que se vai operar na população, em virtude da reforma material da cidade.

A melhor educação é a que entra pelos olhos. Bastou que, deste solo coberto de baiúcas e taperas, surgissem alguns palácios, para que imediatamente nas almas mais incultas brotasse de súbito a fina flor do bom gosto: olhos, que só haviam até então contemplado betesgas, compreenderam logo o que é a arquitetura. Que não será, quando da velha cidade colonial, estupidamente conservada até agora como um pesadelo do passado, apenas restar a lembrança?

Fui até a Prainha e voltei. Eram 10 horas da noite. O povo redemoinhava sempre. A luz, ofuscante, palhetava de prata viva as fachadas novas, espancava com o seu clarão o céu carregado de nuvens, estendia-se em arrufadas e deslumbrantes toalhas sobre a multidão que burburinhava. E, ao passar pelas esquinas, quando o meu olhar se metia pelos apertados e escuros buracos das ruas velhas, eu comparava com os olhos e com o coração o que fomos ao que já somos e – ao que havemos de ser, — e com uma tristeza, a um tempo suave e amarga, pensava: «Porque nasci eu tão cedo? Ou porque não apareceu, há quarenta anos, gente capaz de fazer o que se faz agora? »

E, intimamente, invejava a sorte dos que estão agora nascendo, dos que vão viver numa cidade radiante, — quando eu, e os da minha geração, pela estupidez e pelo desleixo dos enfunados parlapatões que nos governaram, tivemos de viver numa imensa pocilga de dois mil quilômetros quadrados, como um bando de bácoros fuçando a imundície… E, quando cheguei ao Boqueirão do Passeio, voltei-me, e contemplei mais uma vez a Avenida, em toda a sua gloriosa e luminosa extensão. E só então reparei nos coretos, nas bandeiras, nas sanefas, nos arcos de folhagem com que enfeitaram o boulevard recém-inaugurado

Para que folhagens, para que sanefas, para que bandeiras, para que coretos?! Tirem-me quanto antes, já, desta Avenida, que é a gloria da minha cidade, esta ornamentação de festa da roça! O enfeite da Avenida é a própria Avenida, — é o que ela representa de trabalho dignificador e de iniciativa ousada, de combate dado à rotina e de benefício feito ao povo!

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3), editora LeYa, 2017. 
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  1. Carolina Silvino

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