Natal nos engenhos

À luz de candeeiros, vozes murmuradas distribuíam predições de chuva, colhidas na experiência dos astros: “Choveu na primeira e oitava de Santa Luzia. Fevereiro e março vão ter chuvas. Os porcos estão carregando mato: sinal de chuva”. Outro assunto de predileção, mas este, na cozinha, eram as visagens, assombrações e histórias de gente que se “envultava” nas encruzilhadas dos caminhos ou perto dos cemitérios. No silêncio do sono, ouviam-se vozes de crianças que tinham morrido sem batismo a pedir o sacramento. Além do temor dos mortos, os vivos também faziam medo: quilombolas fugidos rios acima, aninhados pelos matos tiravam definitivamente o sono dos que moravam nos engenhos. As crianças dormiam com o susto de bichos infernais: o caipora, os homens amarelos que chupavam fígado de menino, o zumbi, o lobisomem.

No oratório, com suas abas pintadas com santos, as mulheres do engenho, com as crianças entre as pernas, se reuniam para rezar. Faziam preces para pedir chuva, nos tempos de seca, quando os crepúsculos pareciam fornalhas e os vigários exortavam os fiéis a repetir ladainhas à Virgem. Com as portas abertas para o terreiro, às suas vozes vinha se unir o coro de escravos, feitores e homens forros, de joelhos ao ar livre. As rogações anunciadas depois dos sermões dominicais incentivavam que, como penitentes, alguns caminhassem descalços, descabelados, levando andores leves pelas estradas vizinhas.

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O jardim também era um espaço familiar dentro do engenho. Palmeiras, acácias e paus d’arco somavam-se aos pés de vários frutos. Cigarras cantavam nas jaqueiras, em cujo pé cresciam touceiras de coentro, craveiros e pés de bogaris. Quando morria alguém, as sinhás mandava flores para a casa do defunto. Em muitos tanques de azulejo, com seu clássico repuxo, nadavam peixinhos. Os pomares exibiam laranjeiras, mangueiras, tamarindeiros, ingazeiros, pitangueiras, sapotizeiros e plantas de especiaria como a baunilha, a cânfora, o cravo da índia, a caneleira, a noz moscada. Para afugentar pragas, inseria-se casca de ovo entre os canteiros. Para afugentar doenças do galinheiro, uma bandeira em estaca fazia às vezes de sentinela. Nos roçados e plantações, o jeito era usar o chifre ou cabeça de boi, como guardiões da saúde da colheita.

Um mundo de afazeres femininos cercava a mãe e, por extensão, as filhas. Elas conviviam com modistas, que teriam feito aprendizado na casa de uma costureira da Corte, encarregadas do vestuário da sinhá e da sinhazinha. Dividiam com as cozinheiras e as biscoiteiras receitas das respectivas especialidades. Distribuíam ordens às mucamas que arranjavam quartos e alcovas; e que, além disso, serviam banhos em bacias de cobre, e pela manhã, levavam em bandejas o clássico café com leite, gemada ou chocolate, acompanhada de gulodices. Circulavam em meio à mucamas especializadas que tomavam conta de tudo concernente a uma pessoa, encarregando-se nas horas vagas de contar histórias às crianças, de dar-lhes cafunés. Uma coorte de crioulinhas fazia os serviços leves e, pela tarde, areava as bacias, utilizando-se de cinzas e de limões meio partidos.

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O ritmo do trabalho só era quebrado pelo calendário religioso e as festas de colheita. No Natal, por exemplo, recebia-se visita de parentes vindos da cidade. Nestas ocasiões, a casa se enchia de balbúrdia, as escravas aprontando bandejas e compoteiras. Presentes na forma de galinhas, leitões e perus, amarrados com fitas coloridas, eram entregues aos vizinhos e amigos. Os bailes pastoris, outra forma de comemorar, apresentavam um tom monótono e solene com o perfume e a chuva de flores que promoviam ao longo de sua realização.

– Mary del Priore.

 

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Moenda pequena de cana, de Debret.

2 Comentários

  1. Cássio Cavalcante

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