“Não à cultura do estupro”, um cordel de Salete Maria

Cordelista feminista, professora do bacharelado interdisciplinar em gênero e diversidade, da Universidade Federal da Bahia, Salete Maria escreveu o cordel “não à cultura do estupro” em reação ao estrupo coletivo de  uma jovem de 16 anos na cidade do Rio de Janeiro.  No cordel, a autora aponta para a terrível realidade vivida pelas mulheres brasileiras e questiona qual será  a atitude da sociedade diante da cultura machista. outras informações sobre o trabalho realizado por Salete Maria  no blog:  cordelirando.blogspot.com.br

o estupro da menina
nos convida a pensar:
será essa a nossa sina?
temos que nos conformar?
ou temos que ir pra cima?
já que a luta nos ensina
que tudo pode mudar?

a cada onze minutos
um estupro acontece
e não é um bicho bruto
que da floresta aparece
com seu “instinto insano”
e viola um ser humano
conforme lhe apetece

é “gente civilizada”
que estuda ou labora
que cumpre sua jornada
que vai à missa e chora
mas estupra uma mulher
onde e quando bem quer
pois vê que ninguém dá bola

e pratica a violência
achando que está certo
pois compartilha da crença
de que o homem esperto
não perde a oportunidade
de mostrar virilidade
pois sempre estará coberto

afinal nossa cultura
acha normal explorar
o corpo de uma mulher
em tudo quanto é lugar
basta ver as propagandas
e as letras d’algumas bandas
para ver como se dá

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a cultura do estupro
está em todo ambiente
desde a casinha mais simples
ao palacete imponente
passando pela imprensa
religião e ciência
e no discurso eloquente

a ob-je-ti-fi-ca-ção
da imagem da mulher
a hiperssexualização
que o povo aplaude de pé
é uma autorização
para a violação
e quase ninguém dá fé

estuprar uma mulher
significa poder
e nossa sociedade
ensina como fazer
quando educa diferente
ou mesmo quando consente
um homem nos ofender

de onde vem a ideia
que a gente não tem valor?
quem criou essa epopeia
do macho devorador?
que pode nos estuprar
bater e até matar
e divulgar com furor?

limpemos nossa retina
para enxergar a história
e ver como essa cretina
ainda nos ignora
pois narra os grandes feitos
dos machos e seus direitos
deixando a mulher de fora

miremos as nossas casas
escolas e outros espaços
meninas são educadas
a ter direitos escassos
meninos tem liberdade
e andam pela cidade
sem ninguém seguir seus passos

escutemos as conversas
sobre os corpos femininos
atentemos para aquilo
que dizem nossos meninos
pra ver se não é igual
ao discurso social
machista e assassino

olhemos bem para as ruas
e o assédio cotidiano
sob o sol ou sob a lua
é só “fiu fiu” imperando
e piadas de mal gosto
ditas bem perto do rosto
daquela que vai passando

olhemos para a política
e os modos de governar
será que alguém acredita
que sexismo não há
no comando do país
que hoje está por um triz
sem mulher para opinar

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quem tem controle de tudo?
quem manda, quem determina?
quem acha que pode tudo?
quem explora e domina?
quem é “criado pra isto”?
quem acha que tem um visto
pra violar as meninas?

tudo é naturalizado
visto como algo banal
mas as práticas revelam
o machismo estrutural
que ainda culpa a mulher
dizendo: “ela é quem quer
ser estuprada, afinal”

o velho patriarcado
ainda está em vigor
e o machismo é ofertado
como o melhor professor
nos planos de educação
por toda essa nação
sem ter o menor pudor

mas isso tem que mudar
pois é preciso ter fim
o povo tem que acordar
e o estado enfim
precisa assumir a culpa
e acabar com a desculpa
de que as coisas são assim

pois se cada estuprador
responde pelo seu ato
conforme manda a lei
e assim deve ser, de fato
o machismo opressor
que tanta dor já causou
também pagará o pato

precisa ser extirpado
do convívio social
não pode ser tolerado
ou perdoado, afinal
tem que ser eliminado
morto e erradicado
via educação geral

pois se a cultura machista
ensina a maltratar
e estuprar as mulheres
ou até mesmo matar
educar para a igualdade
e para a diversidade
é o que pode transformar

sobre isto o feminismo
tem muito a nos ensinar
já que fala de respeito
de direitos, de lutar
fala de democracia
liberdade, autonomia
e d’outras formas de amar

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não à cultura do estupro
não à dor e à violência
não à exclusão de tudo
não à tanta conivência
não ao machismo perverso!
e assim termino meu verso
pedindo mais consciência!

salete maria
salvador-ba, 26/05/2016

Fonte: LatitudesLatinas

Puberdade" (1894), de Edvard Munch. Reprodução.

“Puberdade” (1894), de Edvard Munch. Reprodução.

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