Mulheres que curam, mulheres que enfeitiçam

Desde tempos imemoriais as mulheres foram curandeiras, e antes do aparecimento de doutores e anatomistas, praticavam enfermagem e abortos, davam conselhos sobre enfermidades, eram farmacêuticas, cultivavam ervas medicinais, trocavam fórmulas e faziam partos. Foram por séculos doutores sem título.

A naturalidade e a intimidade com que essas tratavam a doença, a cura e a morte
tornavam-nas perigosas e malditas. Na acusação de curandeirismo eram duplamente atacadas: por serem mulheres e por possuírem um saber que escapava ao controle da medicina e da Igreja. O Tribunal do Santo Ofício foi uma das manifestações do saber institucional na luta contra os saberes informais e populares. Seus processos geraram um imenso painel em que as práticas femininas de cura e também o corpo feminino como fonte de doenças ou palco de curas foram protagonistas importantes.

Em Pernambuco, por exemplo, no ano de 1762, em Vila Formosa de Serinhaém,
dona Mariana Cavalcanti e Bezerra denunciava ao comissário do Santo Ofício, dom
Antônio Teixeira de Lima, que Maria Cardoso, parda forra, “benzia madres” (úteros) e que sua escrava Bárbara “curava madres”. Em outra localidade da mesma freguesia, uma certa Joana Luzia benzia madres com as seguintes palavras: “Eu te esconjuro madre, pela bênção de Deus Padre e da espada de Santiago, pelas três missas do natal que te tires donde está e vá para o teu lugar, que deixes fulana sangrar”.

Incorporadas ao imaginário popular, encontramos nesta oração duas preocupações
que emergem também dos tratados de medicina: a noção de uma madre
voluntariosa, capaz de mover-se para cima e para baixo no interior do corpo feminino, e a preocupação com as ‘regras’ como mecanismo de controle da saúde. Mas, na ausência do saber médico, a cura era provida pelo ‘mágico’, que disputava com o ‘milagroso’ da ‘prodigiosa lagoa’ o apanágio de curar os corpos doentes.

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A presença de mulheres que curavam outras mulheres, como era o caso de Joana Luzia, Bárbara e Maria Cardoso, é denotativo do papel que exerceram tantas mulheres no universo colonial como curandeiras, mas fala-nos também de uma solidariedade feminina exercida dentro da cultura feminina e que se traduzia em momentos críticos, como os nascimentos, as doenças, o abandono e a morte.

A madre enfeitiçada que carecia de benzeduras era também capaz de gerar coisas
monstruosas, sublinhando na mentalidade do período uma imagem deformada da
mulher ora como feiticeira, ora como mantenedora de um úbere mágico.

Passando de enfeitiçada a feiticeira, a madre utilizava seu poder de conceber
filhos para conceber monstros. Inspirado no livro de Ambroise Paré, De monstro rum
naturae, caussis et diferentiis, o nosso dr. Nunes afirmava, no seu tratado
escrito em Pernambuco setecentista, o nascimento de um “monstro que nasceu com cornos e dentes a cola”, bem como o de um outro que nascera “como um lagarto que repentinamente fugiu”, e ainda uma mulher que dera à luz um elefante e uma escrava que parira uma serpente.

Eis por que não parece impossível a Bernardo Pereira que escrevia
no início do século XVIII, narrar o caso de uma viúva capaz de lançar pela urina
“semente de funcho” ou “um glóbulo de cabelos, que sendo queimados lançavam o
mesmo odor que costumam exalar os verdadeiros”. O douto médico que observava o fenômeno afirmava que este era resultado de uma “astúcia do Demônio”.

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As astúcias do Diabo se faziam presentes também nas madres de mulheres da
Colônia, enchendo seus úberes de fascinação, bruxaria e encantamento. As intenções diabólicas revelavam-se em denúncias como a feita contra o preto José, escravo de Manuel de Sousa, no Grão-Pará no século XVIII. Nela, relatava-se o caso de cura que ele realizara numa escrava de nome Maria, estando esta “gravemente enferma, lançando pela  via de madre vários bichos e sevandijas de cor de latão”. Depois que este lhe misturou potagens e beberagens feitas com “ervas que levava escondidas” e de um ritual mágico que incluía o enterramento de uma espiga de milho no quintal da dita enferma, esta arrojou uma como bolsa ou saquinho por forma da pele de uma bexiga, no qual depois de rota se viam vivos três bichos: um do feitio de uma azorra, o outro do feitio de um jacarezinho e o outro do feitio de um lagarto com cabelos, e cada um dos ditos três bichos eram de diversa cor.

Na Colônia como na Metrópole, excretavam-se cabelos, sementes ou sevendijas,
fato, aliás, já confirmado no clássico estudo de Laura de Mello e Souza sobre a
feitiçaria colonial. Todos os ingredientes, diz ela, presentes também nos estereótipos da bruxaria europeia. – Mary del Priore ( baseado em “Ao Sul do Corpo”).

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“Bruxa e mandrágora”, de Henry Fuseli.

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