Mulheres lascivas: o medo da sexualidade feminina

A retórica em favor da moderação de costumes trazia no seu avesso a condenação
daquela que se excusava à maternidade por ser infernalmente lasciva:

Certo homem, indigno deste nome, amava uma mulher-dama com tão excessivo e
desordenado afeto, que fiado na idade de mancebo e na valentia das forças, pretendeu apagar o ardente mongibelo em que se abrasavam aqueles dois vesúvios de luxúria, e para conseguir tão bárbaro intento soltou as rédeas aos atos torpes da lascívia, de tal sorte que caiu em um copiosíssimo fluxo de sangue pela via da urina, […] ficou sem fala e quase morto, como tem sucedido a muitos que, estando no mesmo ato, perderam de repente a vida“. (Semedo, 1707, p.408)

Mas nesta “mulher-dama” que se mostra um “vesúvio de luxúria” e o oposto da
santa-mãe, cujo corpo é regulado, o homem não encontrará mais que uma “fonte
impura e infeccionada” com “o Proteu das moléstias”: “a céltica ou a venérea”. A oposição entre uma sexualidade má e outra boa acabava por polarizar os papéis femininos e as práticas deles decorrentes. Mulheres casadas, com extensa prole, tendo passado pelas dificuldades da gestação e do parto, dificilmente teriam interesse em “soltar as rédeas da lascívia” pelos riscos de incorrerem em nova gravidez.

Os ataques ao coito desordenado, associando Igreja e medicina, acabaram
também por estigmatizar as mães que davam à luz crianças mutiladas, disformes,
tortas ou corcundas, com a pecha de sua tentativa de passarem do bom coito para
aquele que era a prática da mulher-dama. O controle percuciente e moderno da
sexualidade feminina fazia-se, portanto, associando a lubricidade à prole monstruosa. Essa ética da procriação, como bem resumiu Darmon, acabou dando ao laço carnal uma dimensão espiritual à qual ninguém podia transigir sem ofender a Deus.

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O mesmo olhar misógino, que louvava a procriação feminina para melhor
controlá-la, debruçava-se com indisfarçável superioridade para examinar suas
entranhas. O milagre e o mistério da procriação, instrumento de alavancagem do
capital materno, tinham só em parte a responsabilidade da mulher, segundo os
médicos do período colonial.

Antes de Aristóteles ter seus conhecimentos divulgados, o senso comum
atribuía ao homem o poder fecundante, tendo a mulher apenas a atribuição de ser
fértil como a terra. Nas Eumênides, Ésquilo anunciava que mulheres não geravam
filhos, apenas alimentavam os frutos nelas semeados. Aristóteles, por sua vez, dava caução científica a teorias misóginas que se mantiveram intocadas até o final do século XVIII. Em seu sistema, o homem era tido como “causa eficiente” da vida e do movimento, tendo por atributo insuflar uma alma à matéria bruta fornecida pela mãe.

Poussain de la Barre, no século XVII, reverberando a misoginia latente nesse período, anunciava que tais causas eficientes derivavam de qualidades masculinas, “o calor, a secura e a força”; sendo a mulher apenas causa passiva, suas qualidades eram flácidas e ela só precisava de ‘humores’ que a sustentassem durante a gestação e o aleitamento.

Era nesse clima de desprezo às mulheres que Francisco da Fonseca Henriques
questionava a sensualidade feminina, perguntando-se: “Por que causa entre os animais só as mulheres, no tempo de gestação, apetecem e admitem congresso?” E, em sua resposta, tateava razões psicológicas para o procedimento da mulher:

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Depois que o concebeu a mulher, está saciado o apetite sensível e natural da
propagação da natureza, mas não está pacato o apetite inteligível superior para deixar de apetecer o que pelas espécies sensíveis lhe representar a fantasia”. Tais ‘fantasias’ descoladas da necessidade de procriação pareciam-lhe suspeitamente perigosas, pois “ainda que o feto tomara em se nutrir todas as relíquias do sangue, nem por isto havia de privar as partes da mãe do seu gênio e do seu uso”.

Essas fantasias, aflorando do úbere materno, sendo destiladas de um corpo e de
uma sensualidade mal conhecida, diziam ao médico do poder anestésico e mundificador do sexo, porquanto, segundo o mesmo autor, este era usado para “modificar as calamidades e misérias humanas”. Mas por que não seriam as mulheres capazes de procriar, cabendo-lhes apenas a tarefa de carregar e fazer amadurecer o fruto, numa analogia corrente com a natureza? Invocando Aristóteles, Henriques dizia que elas não tinham “matéria seminal prolificativa” e tão-somente concorriam para a geração com o “sangue mênstruo” que alimentava a criança. “A mulher é um animal imperfeito e passivo, sem princípio e vigor eficiente, razão por que os bárbaros lhe chamam animal acessório”, resumia.

-Mary del Priore (baseado em “Ao Sul do Corpo”).

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“La Maja Desnuda”, de Goya.

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