Mulheres da Idade Média: Joana D’Arc e outras bravas cavaleiras

           Sem dúvida, quando pensamos em mulheres guerreiras no período medieval, a figura de Joana D’Arc é a primeira que nos vem à mente. A Pucelle ou Donzela de Orléans povoa o imaginário ocidental há séculos. Entretanto, cabe destacar que ela não foi a única mulher a pegar em armas e liderar exércitos naqueles tempos. Segundo Sophie Cassagnes-Brouquet, no francês medieval existiam duas palavras, chevalerresse e chevalière, que eram empregadas para designar, respectivamente, a mulher de um cavaleiro e a cavaleira que combatia a cavalo. “Revela-se assim uma faceta completamente esquecida da história da cavalaria, sempre conjugada no masculino”, afirma a autora.

         A guerra era território masculino na Europa do medievo, mas, mesmo assim, existiram mulheres que tiveram necessidade de agir por conta própria devido ao “estado de guerra permanente que reinava nos séculos XIV e XV que acarretava a ausência dos homens – temporária ou definitiva”, explica Cassagnes-Brouquet.  Vários cronistas medievais relataram os feitos dessas damas nada frágeis, que cumpriram a missão de defender seus domínios na ausência de maridos ou de outros parentes homens. O bardo Jean Froissart citou a condessa da Bretanha, Joana de Flandres, condessa de Monfort (1295-1374), “armada e montada em um bom corcel” que “segurava uma espada bem afiada”.

         A Bretanha enfrentava uma guerra de sucessão que se iniciara com a morte do duque João III, em abril de 1341. Seus herdeiros eram meio-irmão João de Monfort (1294-1345), marido de Joana, e sua sobrinha Joana de Penthhièvre, casada com Carlos de Blois, sobrinho do rei da França, Filipe VI. Joana de Flandres, que depois receberia a alcunha de “a chama”, não hesitou em liderar um ataque para incendiar as tendas dos inimigos, quando passou à frente dos soldados de Montfort , na ocasião em que o marido foi capturado. Enquanto esperava reforços prometidos por Eduardo III da Inglaterra, resistia ao cerco de Carlos de Blois.

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          Na mesma época, diz Cassagnes-Brouquet, no conflito entre Escócia e Inglaterra, se destacou a condessa de Dunbar, chamada Black Agnes devido aos cabelos negros. Sitiada pelos ingleses em sua poderosa fortaleza de Dunbar, resistiu por cinco meses. “Um cronista conta como a condessa, a fim de desafiar o conde de Salisbury, que comandava as tropas inglesas, mandou que damas ricamente paramentadas subissem nas muralhas, munida de lenços, a fim de receber os impactos dos tiros das catapultas. Perdendo as esperanças de vencer essa rude guerreira, ele decidiu levantar o cerco. Agnes se tornou uma heroína lendária”.

         A italiana, Ricciarda Visconti (1310-1361), esposa do marquês Tommaso II de Saluzzo, também não se acovardou após a captura de seu marido. Depois que a cidade de Saluzzo, no Piemonte, caiu nas mãos de seus inimigos em 1341, Ricciarda reuniu um exército, salvou seu marquesado e, pagando um resgate, libertou o marido. E ela não se conformou em voltar às suas funções anteriores e continuou a desempenhar um papel ativo na guerra, partindo em busca de reforços destinados a reconquistar seus domínios ao lado do marquês de Monferrato.

         Todos esses feitos acabaram ofuscados pela figura enigmática de Joana D’arc. Como afirma Phillipe Contamine: “a sua história é tão extraordinária que nunca cessou, desde o início de sua vida pública, de provocar questionamentos. Alguns teólogos, em 1499, reconheceram-na como boa cristã, outros, em 1431, a condenaram à fogueira como herege. Em 1456, um novo processo prova sua inocência. Depois de muito tempo, ela é enfim canonizada (1920). Nunca, por quem quer que seja, a Igreja procedeu dessa forma”. A principal questão que permeia os estudos sobre a Donzela de Orléans, segundo o autor, é como entender que uma moça de 17 anos, iletrada, criada em um vilarejo obscuro, tenha concebido a ideia de que Deus a havia incumbido da missão de salvar a França? Hipóteses para explicar o fato não faltaram.

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         Os teólogos que a questionaram não encontraram evidências de que ela fosse uma mitômana ou que tivesse sido instruída por alguém. Então, passaram a indagar qual seria a natureza das vozes que ela ouvia: teriam origem maléfica ou viriam do arcanjo Miguel e das santas Margarida e Catarina, como afirmava ela? Existe ainda a versão laicizada de que Joana estaria seguindo a voz de sua consciência, de sua terra natal e seu povo. E como pergunta Contamine: “não se pode também admitir, mesmo que seja uma simples comodidade de linguagem, que ela tenha sido um ‘gênio’ em seu campo assim como, na mesma idade, Mozart foi no seu?”

         Como bem observou Victor Villon, cada época deu uma resposta diferente para seu comportamento e para as vozes que Joana ouvia. E ressalta: “ao historiador só cabe afirmar que para a sociedade do século XV a existência de profetizas, que iam ao encontro do rei apresentar suas revelações e conselhos iluminados, era algo totalmente possível. O diferencial de Joana foi que não se limitou ao papel de mensageira iluminada, mas fez sim de tudo para concretizar o que vinha prenunciar, tanto que convenceu Carlos VII a ser coroado em Reims e foi aprisionado pelos borguinhões às portas de Compiègne em plena batalha. Joana era dos domínios da palavra, mas também dos da ação”.

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        Joana também desfrutava de prestígio pela santidade (controversa, na época), que como diz LeGoff, representava, na Idade Média, uma tendência de estabelecer certa igualdade entre homens e mulheres. Enfim, uma personagem apaixonante, polêmica, enigmática que põe em xeque, junto com outras bravas cavaleiras, a ideia monolítica de uma “mulher medieval”, que vivia enclausurada e submissa. Muitas souberam, literalmente, ir à luta.

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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“Joana D’Arc”, miniatura 1485.

 

  • Referências bibliográficas: “Homens e Mulheres da Idade Média”, sob a direção de Jacques Le Goff (Estação Liberdade, 2013); “Idade Média, Idade dos Homens”, de Georges Duby (Companhia das Letras, 2011); “Cavaleiras em combate”, de  Sophie Cassagnes-Brouquet (Revista História Viva, nº 129); “Joana D’Arc: verdades, lendas e polêmicas”, de Victor Villon (blog HistóriaHoje.com, ver link abaixo).

 

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2 Comentários

  1. J;SANTOS
  2. Carlos Augusto

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