Monstros do Novo Mundo – a bagagem dos navegadores

 

Quando os portugueses aportaram, por aqui, em 1500, não encontraram só índios, pássaros e plantas desconhecidas. Avistaram, também, monstros. Só que esses, eles trouxeram dentro de sua própria bagagem. Não nas malas de couro ou os baús de madeira que vinham no fundo das naus. Mas a que estava dentro da suas cabeças: a bagagem mental. Sim, porque nossos antepassados, assim como muitos viajantes que os antecederam acreditavam piamente na existência de seres extraordinários. Para eles, monstros não eram uma representação, mas um fato. Isto, porque na era Moderna, os homens se viam como habitantes de um universo sem limites, onde o possível não se distinguia do impossível.

Ao longo dos períodos romano e gótico, o ocidente medieval acreditou que nos confins da Terra viviam raças fabulosas. Viajantes europeus como Giovanni Del Carpini ou, Marco Pólo, homens que cruzaram, em caravanas, as estepes que ligavam a China à Europa, durante o século XIII, confirmavam a existência de maravilhas nunca vistas. Carpini, por exemplo, dizia ter visto um ciclope, criatura com um só braço, mão no meio do peito e um único pé que ao juntar as extremidades, locomovia-se como uma roda. A Igreja apoiava-se em teólogos para confirmar a existência de tais criaturas. Santo Agostinho, por exemplo, foi dos primeiros a apontar o problema. No seu livro Etimologias, o bispo espanhol determinou quatro grandes famílias:  aquela dos monstros individuais, a das raças monstruosas, a dos monstros fictícios e a dos homens animais ou bestas humanas. E mais, o filósofo se empenhou em provar que os monstros também eram filhos de Deus, descendentes de Noé e que eles apenas comprovavam a incrível capacidade criativa de Deus. Uma perna aqui, um olho acolá: eis  a força majestosa da natureza. Força que só poderia emanar do poderoso Criador. E se soubéssemos apreciar a obra divina, não nos cansaríamos de  admirá-la.

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A imprensa ajudou a divulgar a crença na existência de monstros e muitas obras sobre o assunto foram reeditadas. É o caso do Livro da Natureza de Conrado Megemberg, fartamente ilustrado com sereias, dragões, mulheres barbadas e homens com seis braços. Cristóvão Colombo fez questão de reconhecer que, diferentemente do que anunciava o Livro das maravilhas de Marco Pólo, ele não encontrara por estas plagas nenhuma raça monstruosa. Embora tivesse visto à distância três sereias, elas eram, para seu desapontamento,  menos belas do que imaginava! Para  maior parte dos viajantes, a terra era a mesma de um lado e outro do mundo; o Novo Mundo físico, não podia ser diferente do Antigo. Nele , deveriam encontrar-se as mesmas pedras, árvores, climas plantas…mas os homens! Seriam eles o problema: A que espécie pertenciam? Haveria monstros entre eles?

            Para descrever o que era insólito entre as chamadas “produções da natureza”, os autores utilizaram-se da noção de “singularidade”. E aí cabia tudo. Desde índios antropófagos a tucanos, do bicho-preguiça à banana, do abacaxi ao tatu. Nesse conceito, o estranho e o admirável tinham que se encontrar. Eis por que, no Brasil colonial, dizia-se existir no alto rio Branco uma família de homens que não tinha cabeça, mas possuía os olhos no tórax . Padre José de Anchieta, em carta à Portugal, citava um monstro brasileiro, o Curupira. Ele era o ente mais temido pelos índios. Os guerreiros, aliados aos portugueses contavam-lhes os pavores do Curupira, cujo nome era pronunciado entre murmúrios de medo. Todos os animais e entes fantásticos se curvavam à passagem do índio pequeno, de cabelo vermelho e senhor poderoso das matas. Uma característica o aproximava, contudo, de monstros observados do outro lado do mundo, na distante Índia: os pés tornados ao avesso, dedos atrás e calcanhar para frente.

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            Certamente um dos monstros sobre os quais se gastou mais tinta e papel foram as sereias. Tidas por seres de grande beleza, foram se deformando até virar monstros marinhos. Pêro de Magalhães Gandavo, no seu História da Província de Santa Cruz, publicado em 1575, revela o aparecimento de uma delas na praia de São Vicente, São Paulo. Eram chamadas por nossos índios de  Ipupiara: “Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele feroz e espantoso monstro marinho que nesta província se matou no ano de 1564, que ainda que, por muitas partes do mundo se tenha notícia dele, não deixarei todavia de a dar aqui de novo, relatando por extenso tudo o que acerca disto passou”. O autor acompanhava seu texto de uma imagem do monstro “tirada pelo natural”: cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina. No meio do corpo uma cloaca. A Ipupiara estaria longe de sugerir a beleza das sereias capazes de seduzir incautos marinheiros. Já outro cronista, Gabriel Soares de Souza, se diz testemunha quase direta de sua existência:

            “Não há dúvida que se encontram na Bahia e nos recôncavos dela muitos homens marinhos a que os índios chamam pela sua língua ipupiara, os quais andam pelo rio de águas doces pelo tempo do verão, onde os tomam, aos que andam pela borda da água […] A uns e outros apanham, metem-nos debaixo da água, onde os afogam”.

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            O jesuíta Fernão Cardim, escrevendo em 1590, fez questão de dar maiores detalhes sobre tais monstros: os homens teriam boa estatura, embora os olhos fossem encovados. “As fêmeas”, formosas de longos cabelos, pareciam mulheres. O modo que tinham de matar, explicava meticulosos: “é, abraçam-se com a pessoa, tão fortemente, beijando-a e apertando-a consigo que a deixam em pedaços […] e como a sentem morta dão alguns gemidos como de sentimento , e largando-a fogem”. No entender destes cronistas, os monstros marinhos só comiam os olhos, as pontas dos dedos e a genitália das pessoas que matavam. Na tradição de “quem conta um conto, aumenta um ponto”, um viajante inglês, atribuiu-lhes escamas no dorso, garras medonhas, cauda cumpida e uma “língua como um arpão”. Já no Espírito Santo, apareceu um com “olhos oblongos, focinho de cachorro e pelos debaixo do braço”. O terror vai perdurar até a Ipupiara transformar-se, no século XVIII, num “menino de três ou quatro anos”, da cor dos índios, de feições “disformes e grosseiras e a cabeça pouco povoada de cabelos, na descrição do frade Antônio de Santa Maria Jaboatão.

Os monstros marinhos que tanto impacto causaram entre colonos na América portuguesa, constituíam a pedra de toque da autêntica experiência da viagem ou da estada no Novo Mundo. O encontro com a “coisa” inesperada era, na realidade, esperado, pois vinha precedido, no espírito do viajante, da tradição oral ou escrita. Assim, era possível aos seguidores de Santo Agostinho continuar a admirar a natureza e monstros como a Ipupiara como obra de Deus, extraindo de seu maravilhamento novas oportunidades de glorificar ao Senhor. – Mary del Priore.

inferno

Seres monstruosos que faziam parte do imaginário europeu da época, também chegaram ao Novo Mundo.

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