Moda: uma outra história do Brasil

A moda e a indumentária podem ser uma fonte rica de pesquisa para o historiador. Sem a preocupação de inventariar os modismos e estilos de roupas adotados ao longo da história do Brasil, vamos procurar mostrar como “as modas e os modos” podem nos ajudar a entender melhor a formação da sociedade brasileira. É importante observar as diferenças regionais e sociais que influenciaram a vestimenta dos brasileiros, resultado da interação de diversas culturas que alteraram substancialmente o modelo europeu e “branco” transplantado para a Colônia.

Em uma terra onde os nativos andavam nus, os europeus trouxeram uma cultura em que os trajes tinham a função de identificar classes sociais e demarcar as origens de cada um, formando uma intrincada e complexa dinâmica social. Relatos de religiosos, viajantes europeus e governantes portugueses nos trazem informações preciosas sobre o modo de vestir dos habitantes da Colônia. A parcela mais abastada da sociedade passou a utilizar-se da indumentária como forma de marcar a distância em relação à grande massa de habitantes pobres e de escravos. Já os moralistas da Igreja e do Estado, as pessoas que se preocupavam com o chamado “bem público”, condenavam o luxo, a vaidade e a ostentação.

A Igreja e a Coroa Portuguesa estavam atentas a tudo que pudesse desestabilizar modelo idealizado de sociedade, fortemente hierarquizado, não havendo espaço para a quebra das regras pré-estabelecidas de comportamento. No “Vocabulário Portuguez & Latino”, elaborado pelo padre da Ordem de São Caetano, Rafael Bluteau (1712 -1728), a definição de moda vem acrescida de ensinamentos morais: “(…) os vestidos (no sentido de traje e não de roupa feminina como entendemos hoje) se fizeram para cobrir o corpo e como todos os corpos humanos, em todo o tempo sempre são na figura os mesmos, é muito para estranhar a prodigiosa mudança de vestiduras, que uma às outras continuamente se seguem”. Bluteau desaprovava abertamente aqueles que se preocupavam em exibir trajes novos, rendendo-se à moda.

Nesta época, “estar na moda” era estar em sintonia com o que era usado pela alta nobreza. Rainhas, reis, príncipes e princesas eram em quem todos gostariam de se espelhar. Mais do que elegância, vestir-se como os poderosos mostrava status, origem, classe social.  Antes de tudo, era sinal de pertencer a um grupo muito seleto de pessoas que se diferenciavam do restante da população. As cortes mais importantes se alternavam como grandes referências do que se devia ou não vestir. Portugal nunca ocupou este lugar de honra entre as nações europeias. Espanha, Inglaterra, Veneza, Florença e, principalmente, França ditavam moda.

Um jesuíta ilustre, o português Antônio Vieira, levantou a questão da ostentação e do luxo na indumentária colonial em uma de suas famosas pregações. No “Sermão de Santo Antônio (aos Peixes)” de 1654, Vieira adverte: “Quem pesca a vida dos homens do Maranhão e com o quê? Um homem do mar com retalhos de pano (…). No triste farrapo com que saem à rua, é para isto que se matam todo o ano”. Dentre os artifícios da “nobreza” colonial para demonstrar fidalguia, o uso de tecidos finos e a ostentação de joias eram os preferidos. Uma elite, formada por senhores de engenho, grandes proprietários de terra e traficantes de escravos, buscava se destacar na Colônia, aguardando ansiosamente pelos navios que vinham da Europa com novos produtos e notícias sobre a moda vigente nas cortes europeias. 

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Existem diversos relatos de época contendo informações sobre o luxo do vestuário dos brasileiros. A maioria demonstra certo espanto com as roupas e os modos dos membros da elite, que quase sempre pecavam pelo excesso. No Brasil, os títulos de nobreza eram raros, pelo menos até a chegada da Família Real Portuguesa, em 1808, quando D. João VI começou a distribuir honrarias. Formou-se uma casta de fidalgos, geralmente sem título, mas com posses, disposta a provar a todo custo seu caráter nobre.

A tentativa de parecer nobre nas terras coloniais ou a “presunção de fidalguia”, como explica Emanuel Araújo, não se limitava ao vestuário, manifestando-se de várias formas. A exibição de uma árvore genealógica sem mácula (mesmo que falsa), ter amizades influentes, praticar o ócio, exibir títulos (muitos de procedência duvidosa) eram as formas preferidas de demonstrar distinção social. Para ser reconhecido como fidalgo, e ter os privilégios que isto proporcionava, não era suficiente possuir terras e grande número de escravos. Era necessário deixar bem visíveis os sinais que exteriorizavam esta condição. O ser e o parecer se confundiam nesta sociedade.

Os tecidos eram artigos muito valorizados no período colonial, já que eram todos importados via Portugal e comercializados a preços altíssimos pelos mercadores, que os traziam de navio ao Brasil. Nas primeiras décadas da colonização, a produção brasileira se restringia aos algodões mais grosseiros para o uso da população em geral e dos escravos. Os índios já cultivavam e fiavam o algodão selvagem quando os portugueses chegaram por aqui. Em 1785, quando a produção estava em franca expansão, o famoso decreto de D. Maria I proibiu a criação de manufaturas no Brasil para estimular a produção portuguesa e favorecer o comércio com a Inglaterra (que vendia algodão para o Brasil por intermédio de Portugal).

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Na Colônia, os hábitos ligados ao vestuário eram caracterizados por alguns paradoxos. Um dos mais interessantes é o contraste entre as roupas de sair às ruas e as adotadas dentro de casa. Até o século XIX, as mulheres fidalgas que viviam no Brasil pouco podiam sair, a não ser para ir às igrejas, em comemorações de datas religiosas, procissões, ou nas festas do Estado. Quando o faziam, sempre acompanhadas de parentes do sexo masculino (pais, irmãos ou maridos) e de suas mucamas, as damas costumavam vestir uma capa ou mantilha (de renda, sarja ou mesmo lã) que lhes cobria todo o corpo e deixava apenas os olhos de fora. Por baixo de tanto recato, vestiam-se à moda francesa, com tecidos de boa qualidade e muitas joias – as brasileiras adoravam tais mimos.

Já, para ficar em casa e até receber as visitas, as mulheres adotavam um traje bem simples e bem mais liberal: um tipo de camisolão ou camisa de mangas curtas, de tecido leve e transparente, decotado. Eram chamados de “timão” ou “lavapeixe”. Algumas colocavam uma saia leve sobre esta camisola. As finas senhoras quase não usavam meias ou sapatos, apenas chinelas ou ficavam mesmo descalças. Nada de espartilhos ou corpetes. O peito ficava descoberto, sem pudores; os cabelos, soltos. Os homens também se tornavam desleixados na intimidade: dispensavam as meias ou as usavam caídas, a camisa branca ficava para fora dos calções, sem coletes, casacas ou capas. No máximo, uma jaqueta fina ou gibão (casaco curto). Os mais despojados, vestiam apenas ceroulas e camisa. Sapatos eram substituídos pelos chinelos.

No caso dos escravos, a responsabilidade de mantê-los decentemente vestidos era dos senhores. Em geral, estes não se preocupavam em oferecer trajes adequados para os servos. Apenas os escravos “de dentro” ganhavam roupas mais luxuosas, principalmente quando saíam à rua, pois, era sinal de prestígio exibir escravos bem vestidos acompanhando seus senhores e senhoras em passeios pela cidade. Os outros costumavam andar seminus, apenas com uma camisa ou calça de tecido grosseiro (que logo viravam trapos).

Os escravos das incipientes cidades gozavam de relativa liberdade para os seus negócios. Muitos deles eram “de ganho” ou aluguel, já que realizavam serviços em troca de pagamento. A maioria precisava entregar parte de seu lucro aos donos, mas, mesmo assim, era possível acumular certo capital para comprar a tão sonhada carta de alforria. Os negros e mulatos forros se incorporavam a esta massa de trabalhadores.

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A prostituição foi uma das alternativas de ganho para as mulheres cativas e libertas. Com isto, não fica difícil deduzir que muitos escravos podiam adquirir mercadorias, como roupas e joias. Os escravos alforriados representaram um papel importante na sociedade da época, principalmente com a descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais do século XVIII. As mulatas forras, como a famosa Chica da Silva, escandalizaram as elites com seu luxo e ostentação – como nos mostra Júnia Furtado, em sua obra sobre esta figura tão conhecida no imaginário brasileiro.

O luxo da “população de cor” incomodava os “homens bons” e os religiosos da Colônia e da Metrópole, sendo criadas leis para evitar que “negras, negros e mulatos” usassem tecidos finos, joias, brocados e adereços de ouro. Tais iniciativas mostram preocupação com a quebra de hierarquia e a “promiscuidade de classes” que o costume, tão difundido, causava aos olhos dos governantes. Na visão destes, era preciso evitar a “murmuração” da população, o que só seria possível com estrita obediência às leis e normas.

Em 1808, com a chegada da Família Real e a abertura dos portos às “nações amigas”, o Brasil foi inundado por produtos importados, sobretudo da Inglaterra. A moda masculina passou a ser dominada pelos comerciantes ingleses, enquanto as mulheres adotavam a moda francesa. Os brasileiros mais ricos adquiriam o hábito de fazer compras nas ruas chics do Rio de Janeiro, como a rua do Ouvidor e a Direita. Muitos escravos e forros foram trabalhar neste comércio do luxo e aprenderam novos ofícios, abrindo posteriormente seus próprios negócios.

A corte de D. Pedro II era austera e pouco dada a grandes eventos sociais, a exemplo da personalidade do próprio Imperador. A elite da época, entretanto, esforçava-se em mostrar-se elegante e opulenta. As mulheres caprichavam nos vestidos de tecidos nobres, joias, luvas e chapéus; os homens circulavam trajando calças e casacas escuras, cartolas, lenços, luvas, relógios e bengalas.

Com o advento da República (1889) e as mudanças do século XX, os brasileiros passaram a adotar roupas mais leves e práticas. O chapéu do Panamá virou moda entre os homens modernos, como o dândi Santos Dummont. As mulheres começaram a ter certa liberdade e a trabalhar fora, não apenas nos serviços domésticos como era costume entre as mais pobres. As roupas refletiram tais novidades: saias mais curtas e sem armações, decotes e botinhas até os tornozelos. Chapéus e luvas eram obrigatórios para todas as classes sociais, assim como os terríveis espartilhos.- Márcia Pinna Raspanti



modaRoupas e acessórios dos escravos nos contam muito sobre seu modo de vida. (Debret)

 

8 Comentários

  1. Marcia Caldas Vellozo Machado
  2. Maria de Fátima Mattos
  3. Ligia Guido

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