Em Portugal e no Brasil do século XVI, havia um certo costume de dizer palavras de consagração da hóstia em meio aos atos sexuais. Acreditava-se então, que proferir em latim na boca do parceiro sexual as palavras com que os padres diziam estar o corpo de Deus contido na hóstia podia ter grandes resultados: manter a pessoa amada sempre junto a si e prendê-la, portanto; fazê-la querer bem e nesse caso conquistá-la; impedi-la de tratar mal a quem proferisse as palavras da sacra em pleno ato sexual, evitando humilhações e maus tratos que os homens impingiam com frequência as mulheres.
Eram elas, por sinal, que mais utilizavam esse expediente, “consagrando” os maridos e os amantes, tal qual hóstia, em meio aos prazeres da carne. Mas não era impossível que os próprios homens se valessem desse recurso, quando queriam conquistar e seduzir, do que dá prova a documentação inquisitorial. Seja como for, o sagrado invadia o profano e pode-se mesmo imaginar o quão peculiar devia ser o enlace de corpos naqueles tempos, os amantes ou casais proferindo, entre gemidos e sussuros o hoc est enim corpus meum, a intimidade temperada pelo ritual da missa, explica Ronaldo Vainfas.
Com a erotização das palavras eucarísticas, explica, adentramos o vasto terreno das magias amorosas, das crenças e ritos que por vezes foram assimilados a feitiçaria e relacionados pelo Santo Ofício a ocorrência de pactos diabólicos. Mas elas mais remetem as autênticas expressões de religiosidade popular, de práticas mágicas que a historiadora Laura de Mello e Souza relacionou à preservação da afetividade. As fontes inquisitoriais, relativas ao vasto período do século XVI ao XVIII, em várias partes da Colônia, trazem a luz diversos artifícios então utilizados que poderíamos chamar de magia erótica. Antes de tudo, as “cartas de tocar”, magia ibérica que se fazia por meio de um objeto gravado com o nome da pessoa amada e/ou palavras, o qual objeto encostado na pessoa, seria capaz de seduzí-la. A Celestina de Rojas usava favas para facilitar mulheres a homens, bastando nelas gravar o nome das presas cobiçadas, depois de encostado o fetiche nas moças. No Brasil, não se usavam favas mas papéis, por vezes, contidos em bolsas de mandingas para “fechar o corpo”.
Nas Visitações que fez o Santo Ofício no século XVI, se descobrem várias bruxas pois disso foram chamadas as acusadas de vender as tais “cartas” e divulgar outras magias eróticas. Em Minas, no século XVIII, certa Águeda é acusada de possuir um papel com algumas palavras e cruzes, “carta” esta que servia para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente. No Recife, certo Antonio Barreto era quem portava um papel com signo salmão e o credo às avessas, magia que servia para fechar o corpo e facilitar mulheres: “qualquer mulher que tocasse a sujeitaria a sua vontade”. Seriam inúmeros os exemplos.
Além das cartas de tocar recorria-se, também, com idênticos propósitos as orações amatórias, muito comuns na Colônia e práticas universalmente conhecidas. Este era um ramo de magia ritual em que era irresistível o poder de determinadas palavras e, sobretudo, do nome de Deus, mas, que não dispensava o conjuro dos Demônios. Tudo com o mesmo fim de conquistar, seduzir e apaixonar.
A bruxa baiana do século XVI, certa Nóbrega, mandava rezar junto ao amado: “João eu te encanto e reencanto com o lenho de Vera cruz e com os najos filósofos que são trinta e seis e com o mouro encantador que tu não te apartes de mim e me digas quando souberes e me dês quando tiveres, e me ames mais do que todas as mulheres”. Não tão melodiosa quanto a oração da Nóbrega era a que fazia Maria Joana do Pará setecentista – reza que a moca proferia fazendo cruzes com os dedos: “Fulano, com dois te vejo, com cinco te mando, com dez te amarro, o sangue te bebo, o coração te parto. Fulano, juro-te por esta cruz de Deus que tu andarás atrás de mim assim como a alma anda atrás da luz, que tu para baixo vires, em casa estares e vires por onde quer que estiveres, não poderás comer, nem beber, nem dormir, nem sossegar sem comigo vires estar e falar”. Poder-se-ia, também, aqui multiplicar os exemplos de rezas com fins eróticos que aludiam às almas, ao leite da Virgem, as estrelas, ao sangue de Cristo, aos santos, anjos e demônios.
Revelador de certa mistura religiosa pagã e cristã, o domínio dos sortilégios, a exemplo das orações é tão mais singular, quanto irrigado no Brasil, pelo fluxo de ingredientes culturais africanos e indígenas. Sortilégios e filtros para “fazer querer bem”, seduzir, reter a pessoa amada eram passados pela tradição oral, multiplicados pelo uso cotidiano, convivendo entre mais diversos grupos sociais. – Mary del Priore.
“Bruxas de Sabá”, de Francisco Goya (1797-98): ritual pouco conhecido no Brasil.
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