Lingerie, camisolas e a erotização do corpo feminino

        Roupa de baixo usada desde a Antiguidade, a camisa, camisia, camisilis ou camsile em latim, avó da camisola, era uma roupa feita de lã ou linho que ganhou notoriedade na Idade Média, entre os séculos XIII e XIV. Também conhecida como “pano do pudor”, podia ser retirada ou não, à noite, para dormir. Daí sua acepção em francês: camisa de noite ou chemise de nuit. As iluminuras medievais retratam homens e mulheres usando o mesmo tipo de camisola. Branco, simples, com uma abertura no pescoço e indo até os joelhos. Entre as classes desfavorecidas, a camisola era usada sobre o corpo, feita em tecido mais rústico, como uma forma de camisa que durante o dia, escondia-se sob as saias ou dentro das calças. A italiana Maria de Médicis, segunda esposa de Henrique IV, levou para as cortes francesas o hábito de camisas de noite ricamente bordadas com fios de seda, prata e ouro, introduzindo sofisticação à indumentária.

        Os viajantes que passaram pelo Brasil na primeira metade do século XIX, descrevem as mulheres, na sua intimidade, usando esse tipo de indumentária. Rugendas e Debret as pintaram. Era chamada “cabeção” e tinha a vantagem de ser usada sem o uso de espartilhos. À vontade em casa, com os ombros e por vezes os seios a mostra, as sinhás as portavam enquanto desempenhavam tarefas domésticas como bordar, costurar ou fazer doces. Seu uso estava associado à noção de privacidade e à ausência de espectadores masculinos. Maria Graham, escritora inglesa que por aqui passou na primeira metade do século XIX, chocou-se ao ver as brasileiras de “papelote nos cabelos e vestidas com o simples cabeção”. Para os estrangeiros, essa forma de estar vestida confundia-se com desleixo e sujeira.

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        Com a consolidação da noção de privacidade na segunda metade do século XIX, as casas ganham quartos e eles se tornam o altar da procriação. Homens e mulheres dormiam de camisola ou “camisa das famílias cristãs”, com aberturas na altura do sexo, para permitir o ato sexual que então, devia ser regrado e rápido. Muitos traziam bordados do tipo “Deus abençoe essa família”. O culto da pureza que idealizava as mulheres reforçava a distância entre os casais. E não faltavam “conselhos” em toda parte:

Lembrai-vos também que ainda quando no quarto e leito conjugal se dispense o pudor, a castidade, contudo é de rigoroso dever e conveniência, porque a mulher que se abandona a todos os caprichos e fantasias se faz desprezível aos olhos de sua própria consciência e aos de seu marido se ele não é um libertino e debochado”.

         Na mesma época, os imigrantes ingleses introduziram o pijama, do indi pâae-jama. Indumentária de uso noturno constituída por uma camisa e calça, foi descoberta pelos funcionários ingleses em serviço na Índia. Ele foi adotado pelos brasileiros junto com o robe de chambre, ou vestido de quarto. Ao final do século XIX, a industrialização da lingerie vai incrementar as camisolas. Designando uma roupa íntima ela vai ganhar novo nome, deshabillé, e um status mais erótico. A ideia era a de tornar a mulher mais sedutora na intimidade e sua imagem em deshabillé se tornou associada ao charme e à sofisticação. A promessa de uma sensualidade então desconhecida passou a ser associada ao corpo feminino e ao seu desnudamento por meio de imagens em revistas e anúncios, ao crescimento dos esportes e à presença das mulheres nas ruas e no trabalho – que antes era estritamente doméstico.

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          Depois da I Guerra Mundial, tecidos como a seda, o cetim e as rendas começam a ser industrializados barateando o acesso das mulheres às peças íntimas como a camisola, agora, mais sensuais. Brasileiras de famílias abastadas encomendavam as suas nas costureiras francesas instaladas na capital ou faziam vir do exterior para os enxovais de casamento. Mas, ainda era o tempo em que os homens tinham que despir as mulheres: a presença de botões, laços e laçarotes tinha por objetivo “complicar” o desnudamento, tornando-o mais sensual.

         Na intimidade das brasileiras, certo apuro no consumo das chamadas “roupas brancas” ou “de baixo” incentivou a exibição discreta dos encantos femininos. Catálogos oferecendo camisolas, anáguas, “corpinhos” que valorizassem as “graças naturais” corriam as cidades. Espartilhos, meias de seda 7/8, ligas avulsas presas às cintas, continuaram sendo usadas por muitas mulheres. Mas, não mais por uma imposição ou falta de opções, e sim por uma questão de estilo ou fetiche, já que esses acessórios se tornaram símbolos de erotismo e sensualidade na sociedade ocidental. A vida conjugal tinha que ganhar poesia, graças a tais preocupações que garantiam a “harmonia do lar”. Nada de mulheres desgrenhadas, arrastando-se de roupão dentro de casa.

         O corpo feminino, ao contrário, passa a ser o suporte de um erotismo constante. Nas revistas femininas, multiplicaram-se anúncios de produtos de incentivo ao narcisismo, antes esmagado pelo pudor. A mulher ousava olhar-se no espelho. Ela constatava suas imperfeições e corria para corrigi-las. O “colete Phrynêa” dava “soberana perfeição às linhas”, as pílulas Orientales, “aformoseavam os seios”, o vibrador “Veedee” dava ao corpo uma forma arredondada, sinônimo de “belleza”. O “Mammigene do Dr. Polacek” endurecia peitos caídos. A “Pérola de Barcelona” deixava as mulheres “deliciosas” e o sabão Aristolino amaciava a pele.

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       Graças a lingerie, o corpo passou a ser um objeto estético, fonte de desejo e contemplação, não só o santuário de virtudes vitorianas e hipocrisia. O pudor começava a recuar. Inculcado desde a primeira infância e reforçado nas meninas, durante a adolescência, doravante ele iria se articular com as exigências do casamento. Casais se escolhiam cada vez menos para atender aos interesses familiares e cada vez mais por amor. O trunfo do encanto físico e da sedução passava a contar. E o refinamento da sugestão introduzia-se na intimidade de homens e mulheres

       Entre os anos 30 e 60, a indústria da moda íntima e, portanto das camisolas, vai se beneficiar com o cinema. E grandes atrizes ajudarão a divulgar a importância da intimidade feminina. De Marlene Dietricht , Grace Kelly a Brigitte Bardot, inúmeras pin-ups desfilaram em deshabillé ou camisola nas telas. A aparição do nylon, nos anos 40 vai trazer transparência aos tecidos. Leia-se: maior visibilidade ao corpo feminino, maior exposição do mesmo e maior exigência na qualidade do que se mostrava.

  • Texto de Mary del Priore.

Imagem: “A Moda da Década de 20”, organizado por Charlotte Fiel e Emmanuelle Dirix (Publifolha, 2014).

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