Lima Barreto e o teatro brasileiro

O pesquisador Felipe Rissato, que estuda a obra de Lima Barreto, encontrou, em revistas, três crônicas desconhecidas do autor carioca. São textos veiculados na revista Theatro & Sport, em 1917, 1920 e 1921. O tema das crônicas é o teatro. Vamos publicar hoje terceira crônica. Boa leitura! 

 

“Com toda a sinceridade” (15)

O problema do teatro brasileiro, isto é, de teatro de atores brasileiros ou abrasileirados, no meu humilde entender, não é questão de teatro oficial ou oficializado, por este ou aquele governo. Com a minha incompetência reconhecida, julgo que é antes uma questão de propaganda e teima. O governo é incapaz de criar qualquer cousa e, muito menos, com as suas criações, despertar o estímulo indispensável que faz desabrochar temperamentos artísticos.
Verifica-se que, modernamente, nos nossos regimes mais ou menos democráticos, o Estado tem o culto da incompetência e da irresponsabilidade. Antes que Faguet (16) notasse isto, aqui e ali, os homens estudiosos das cousas sociais tinham observado, com espanto, como, nos nossos estados modernos, principalmente nas instituições normais do Estado, se dava a seleção dos menos aptos, a seleção das mediocridades. O mais medíocre é o que sobre.
Quem conhece diretores e chefes de serviços de toda a natureza, pela primeira vez – fica admirado que o sejam um tanto atraso mental e de compreensão tão tarda.
Nas assembleias políticas, com raras e honrosas exceções, o domínio não é dos médios, é dos inferiores. Não há só o misoneísmo próprio a elas e a eles; há o retrocesso, há o respeito pelo estabelecido e o horror a examinar o que é novo.
O governo, ou melhor: o Estado não é um fator de progresso ou de aperfeiçoamento; é antes uma armadura rígida para contê-los e mesmo comprimi-los. Os progressos da humanidade, pode-se dizer até o ponto em que uma regra geral é verdade, que se há operado em todos os tempos apesar do Estado e mesmo contra ele.
Os legistas são exemplo típico do que digo. Eles sempre encontram nos códigos da rainha Theodora (17) e outras, argumentos para contrariar as inovações generosas e é esse atroz direito romano que os inspira na criação constante de violências legais e reacionárias.
O exemplo da abolição da escravidão negra está aí, para demonstrar isso; e, com mais paciência e espaço, poderia citar muitos exemplos do que afirmo.
A essência do Estado, na sua melhor fórmula e quando ele o é de fato, é conservar; e, sem melindrar ninguém, penso que não há ninguém que sinceramente almeje o alevantamento e o progresso do teatro nacional que queira conservar o que temos.
Para se desenvolver, para se purificar, para enfim chegar a um relativo grau de perfeição, ele deve mais do que nunca, prescindir da tutela do governo.
Deve-se fazer por si e ser livre, para exprimir com vigor o seu pensamento, os sonhos e as dores de todos nós. O governo não quer isto. O governo quer um respeito pelas fórmulas e pelas ideias e pelas suas conveniências anciãs de pátria, de família e de religião.
É esta a minha opinião sobre a oficialização do teatro nacional. Os verdadeiros entusiastas sinceros da criação desse teatro devem repelir a intromissão do oficialismo nele; entretanto, devem, por palavras e obras, atrair a opinião pública para ele.
Governo no teatro, entre nós, é exames, concursos, regrinhas e feitiço e “pistolões” políticos; é todo um arsenal burocrático e “academia” que não fará atores, nem suscitará autores, como as nossas escolas chamadas superiores.
Todas essas altas criações sociais que herdamos dos nossos maiores, são criações que precisam tempo para se nacionalizar; e o Estado pode tudo, menos eliminar nelas o fator tempo. Um exemplo.
Quando o governo quer proteger um letrado, dá-lhe um lugar pomposo: diretor disto ou daquilo, embaixador, secretário de Legação, etc., etc.
O que acontece? Acontece que o sujeito não faz mais nada que preste. O brilho da posição fá-lo esquecer a necessidade de aperfeiçoar-se para competir e ele se põe a ruminar com os gordos vencimentos do emprego, às vezes trabalhoso mas estéril, as gloriosas promessas que fez ao aparecer.
O governo esteriliza e é por si mesmo estéril; e, por isso, julgo que as pessoas que se interessam, do fundo d’alma pelo ressurgimento ou pelo advento, como quiserem, de um teatro nacional digno, devem continuar a trabalhar para isto, desta ou daquela maneira, pondo, porém, o governo de parte.
É opinião de um incompetente, (18) mas de um incompetente sincero.

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LIMA BARRETO

NOTAS:

(15) Theatro & Sport, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 333, 26 mar. 1921.
(16) Auguste Émile Faguet (1847-1916), escritor e crítico literário francês.
(17) Casada com Justiniano I, governou, ao lado do marido, o Império Bizantino, na primeira metade do século VI.
(18) Sete anos antes, no primeiro de dois artigos intitulados “O Teatro Nacional: males, preconceitos e remédios”, publicado em O Theatro, Rio de Janeiro, ano I, n. 2, 4 maio 1911, Lima é menos defensivo: “Falo pouco [sobre teatro], poucamente, de modo que quem me julgar incompetente tem tempo de demonstrá-lo e prová-lo”.

Capa da revista Theatro & Sport

Capa da revista Theatro & Sport (reprodução)

 

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