Impeachment ontem e hoje

             As temperaturas na política brasileira estão altíssimas: o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef está em andamento. Cercada de polêmicas, acordos políticos e controvérsias jurídicas, a iniciativa tem causado muitas discussões e até enfrentamentos entre a população. Em 1992, o então presidente Fernando Collor de Mello passou por um processo semelhante e renunciou. Os cenários são bastante diferentes, inclusive no que se refere ao apoio popular, mas é importante recordar os fatos que levaram ao afastamento de Collor:

           Em 1989, pela primeira vez na história brasileira, a maioria da população escolheria seu dirigente máximo. Não por acaso, essa crescente participação popular – registrando-se inclusive, em 1988, a vitória do Partido dos Trabalhadores na sucessão da prefeitura de São Paulo – fez renascer o discurso anticomunista. Líderes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) ameaçam organizar uma campanha de saída de empresários do país caso Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, chegasse à presidência. A eleição que definiria o sucessor de Sarney, a primeira feita pelo voto direto em mais de um quarto de século, é polarizada por forças políticas de direita e de esquerda.

           O discurso anticomunista também ocorre nos meios agrários, como foi o caso da União Democrática Ruralista (UDR), nascida como resposta ao Movimento dos Sem-Terra (MST). Durante o governo militar, a repressão abate-se violentamente sobre os que lutam pela terra. Paralelamente a isso, os militares tomam algumas medidas – com o objetivo de diminuir as tensões no mundo rural. A construção da Transamazônica foi interpretada por alguns estudiosos como uma espécie de contrarreforma agrária, na medida em que abriu para as populações rurais pobres – principal foco das Ligas Camponesas – uma nova fronteira de expansão. Na prática, porém, os projetos de colonização na Amazônia fracassaram ou não tiveram continuidade. Em 1985, o MST retoma a ancestral luta pela reforma agrária brasileira. Como vimos, essa luta não é nova, sendo defendida por abolicionistas do século XIX e pelas Ligas Camponesas nos anos 1950-60.

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         Nesse clima de insegurança entre as elites agrárias e empresariais, surge um candidato que realinha as forças políticas: Fernando Collor de Mello, político originário do PDS e eleitor de Paulo Maluf na eleição presidencial de 1985. Por meio de uma coligação de pequenos partidos – Partido da Reconstrução Nacional, Partido Social Cristão, Partido Social Trabalhista e Partido Renovador Trabalhista –, Collor candidata-se à presidência. Concorrendo com ele há grandes agremiações e políticos de renome nacional, dentre os quais Ulisses Guimarães (PMDB), Aureliano Chaves (PFL), Mário Covas (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Paulo Maluf (PDS) e Leonel Brizola (PDT). Até março de 1989, Fernando Collor ocupa uma posição modesta nas intenções de voto. A partir daquele mês, a situação se altera. O candidato passa a liderar a campanha presidencial, e devido ao receio de que a eleição fosse vencida por um candidato de esquerda – Lula ou Brizola –, PFL, PDS e boa parte do PMDB apoiam Collor.

        Como é possível que um candidato praticamente sem estrutura partidária alcance tamanho sucesso? Ora, não por acaso, no referido mês de março, começam os programas eleitorais dos partidos da coligação a que ele pertencia. A eleição de 1989 mostra uma nova faceta da democracia: o peso dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão. Collor explora com habilidade essa mídia, conseguindo apoio das camadas mais pobres e sem escolaridade. O apoio velado dado pelos partidos majoritários no primeiro turno torna-se apoio declarado no segundo. Seu governo, porém, dura apenas dois anos, encerrando-se em 1992, em meio a um processo de impeachment, fruto de uma crise econômica, assim como por comportamentos hostis ao Congresso e pela ampliação da corrupção numa escala até então nunca vista.

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       Uma vez mais, coube a um vice-presidente, Itamar Franco, assumir o posto presidencial. A herança de Collor é nefasta. Seu fracassado plano econômico, de confisco dos ativos financeiros (incluindo aí os recursos das cadernetas de poupança), cria um clima de descrédito em relação às políticas anti-inflacionárias. Além de não ser bem-sucedido, o novo plano lança o país em uma profunda recessão. Em 1993, já se discute abertamente o processo sucessório. Lula lidera as pesquisas de intenção de voto. Inicialmente imagina-se que seu principal concorrente seria Paulo Maluf, recém-eleito para a prefeitura de São Paulo. Contudo, em agosto daquele ano é dado início a um novo plano econômico. Ao contrário do precedente que, como se dizia na época, tentava matar o tigre da inflação com um tiro só, o Plano Real foi concebido como um processo de estabilização a ser implantado aos poucos.

          A inflação, contida graças à política cambial ancorada no dólar e a uma redução nas emissões monetárias, começa finalmente a cair continuamente. Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, procura capitalizar para si os dividendos dessa vitória. Em março de 1994, como candidato do PSDB, alia-se ao PFL e prepara caminho para receber um discreto apoio do antigo PDS, agora sob a sigla de PPB. As transformações ocorridas nos anos 1990 esvaziam em boa medida o discurso anticomunista. A queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética são exemplos emblemáticos deste processo. No Brasil, a trajetória do PCB, finalmente legalizado, concorrente nas eleições presidenciais de 1989, é reveladora disto: além de abandonar a bandeira comunista o partido aprova, em 1992, a autodissolução, formando o Partido Popular Socialista (PPS), agremiação social-democrata.

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         Fazendo de sua bandeira o prosseguimento do Plano Real, a eficiência administrativa e a reforma do Estado, Fernando Henrique vence as eleições de 1994. Quatro anos mais tarde, o Congresso aprova o dispositivo da reeleição. O presidente em exercício mais uma vez sai vitorioso. Durante oito anos de mandato são implementadas medidas econômicas voltadas à internacionalização da economia, privatização de empresas estatais, desregulamentação de mercados e controle dos gastos públicos. Incentivos de várias naturezas são postos em prática para atrair os investimentos do capital estrangeiro, de longo e curto prazos, ao mesmo tempo em que, para se manter a estabilidade econômica, o país entra em uma nova espiral de endividamento externo e de desemprego crônico. Definida genericamente como neoliberal, tal política gerou controvérsias e ácidas críticas. Porém, ao contrário do passado, o sistema político de democracia de massa permite que o modelo de desenvolvimento do Brasil seja, de quatro em quatro anos, avaliado pela maioria da população.

  • “Uma Breve História do Brasil”, de Mary del Priore e Renato Venancio. Editora Planeta.

 

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Fernando Collor de Mello: renúncia devido ao processo de impeachment.

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