A formação da identidade nacional: orgulho de ser brasileiro?

Em meados do século XIX, a capital do Império viu surgir uma nova
moda cultural: a de procurar vestígios de antigas civilizações que teriam
existido no interior do Brasil antes da chegada de Cabral. Tais incursões,
promovidas pelo prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) não eram organizadas por lunáticos, mas por renomados intelectuais da época que contavam, inclusive, com o apoio do governo imperial. A primeira delas, realizada em 1839, teve
dimensões modestas, destinando-se a buscar vestígios arqueológicos
nas imediações do Rio de Janeiro, onde se acreditava existir – na Pedra
da Gávea, sintomaticamente denominada Esfinge – escritas rupestres de
autoria de antigos fenícios. Embora essas suspeitas não tenham se confirmado, a esperança de novas e espetaculares descobertas não desapareceram. Tanto foi assim
que, em 1840, iniciaram-se os preparativos de uma arrojada incursão ao
sertão baiano com o objetivo de confirmar informações, que circulavam
desde o século XVIII, a respeito das ruínas de uma cidade antiga nas
remotas matas do Cincorá. Como seria de esperar, essa expedição,
apesar de ter durado vários anos, não obteve sucesso.

Nem tudo, porém, era fracasso. Alguns empreendimentos científicos,
embora não vinculados diretamente ao IHGB, resultaram em descobertas
surpreendentes. Isso ocorreu, por exemplo, em Lagoa Santa, Minas
Gerais, onde o cientista dinamarquês Peter Lund identificou, na década
de 1840, fósseis humanos pré-históricos, confirmando as expectativas
sobre um antiquíssimo povoamento do território brasileiro.
Animados com essas descobertas, os membros do IHGB reiniciaram
as explorações arqueológicas, identificando, em várias partes do
território brasileiro, sambaquis – uma espécie de depósito de lixo pré-
histórico. Alguns desses depósitos alcançavam dimensões gigantescas e,
no entender da época, bem que podiam esconder no seu interior
construções monumentais.

Paralelamente a essa arqueologia fantástica, desenvolveu-se na
capital do Império uma linguística igualmente fantástica, na qual aquele
que é considerado o fundador da historiografia brasileira, Francisco
Adolfo de Varnhagen, procurou demonstrar, por meio da comparação de
vocábulos indígenas com os de antigas civilizações, a origem euroasiática
dos povos tupis-guaranis. Com base nesse conjunto de indícios,
especulou-se a respeito da origem dos índios do Brasil, quase sempre
afirmando que eram “povos decaídos”, ou seja, descendentes de altas
civilizações mediterrâneas, como a dos egípcios ou fenícios, que haviam
regredido ao estado de selvageria. O imperador d. Pedro II não se furtou
ao debate, escrevendo, na década de 1850, aos diretores do IHGB para
que procurassem responder o mais rapidamente possível: quais são os
vestígios que podem provar a existência de uma civilização anterior aos
portugueses? E, mais ainda, em um rompante de etnólogo amador, o imperador
sugeriu uma nova questão, interrogando: Existiram ou não as amazonas
no Brasil?

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Aos olhos do leitor atual, esses insólitos empreendimentos científicos
podem parecer piada. Na época, porém, o tema era levado a sério. Para
compreendermos a razão disso, devemos ter em mente que as buscas
arqueológicas oitocentistas eram uma espécie de ponta de iceberg de
outra questão fundamental da época: a da identidade nacional brasileira.
Logo após 1822, surgiram movimentos que questionavam o projeto político imperial carioca e reivindicavam o federalismo ou até a independência de suas
respectivas regiões. A luta contra esses movimentos demandou
extraordinários recursos humanos e financeiros. Sua evolução também
esteve longe de ser linear. Em 1831, a abdicação de d. Pedro I ao trono
significou uma vitória das forças descentralizadoras, havendo o que se
convencionou chamar de “experiência republicana”, tendo em vista a
eleição direta de regentes, uma espécie de presidente da época, como
foi o caso de Diogo Feijó.

No entanto, a abdicação não diminuiu o ímpeto separatista. Ao
contrário, o período que se estende até 1848 foi caracterizado peloavanço desse segmento. A elite imperial não só ordenou o massacre dos
rebeldes das províncias como também procurou criar instituições que
viabilizassem o projeto monárquico. Os intelectuais vinculados a esse
projeto investiram, por sua vez, no combate aos movimentos
separatistas, mostrando que os brasileiros constituíam uma nacionalidade
com características próprias. Em outras palavras, para ser viável, o
Império deveria não só se impor através da força, como também por
meio de boas instituições e de uma identidade coletiva que justificasse a
razão de ser da nação que estava se formando.

Para felicidade desses intelectuais, a última questão também era
enfrentada por boa parte dos países europeus, em processo de
unificação, facultando-lhes assim um conjunto bastante rico de
discussões a respeito da construção da identidade nacional. A instituição
que centralizou tais debates foi o IHGB, que reuniu historiadores,
romancistas, poetas, administradores públicos e políticos em torno da
investigação a respeito do caráter nacional brasileiro. Nas discussões que se seguiram imediatamente à fundação do IHGB, a versão do que seria o elemento central da história nacional, ironicamente, foi definida por um estrangeiro. Segundo o esquema
proposto por Karl von Martius, naturalista alemão, a história do Brasil resultaria da fusão de três raças: branca, negra e índia. Com certeza,nos dias de hoje tal definição não é levada a sério, pois sabemos que a história não é um subproduto das raças. Além disso, do ponto de vista cultural, os três grupos mencionados não formaram unidades homogêneas, nem muito menos mantiveram relações igualitárias no Novo
Mundo, como a noção que fusão sugere. Na época, porém, a tese de
Martius estava em dia com os mais avançados debates científicos. A “teoria” das três raças se fundindo e formando a nacionalidade apresentava ainda dois atrativos suplementares. Em primeiro lugar, mostrava que os brasileiros eram diferentes dos portugueses, sendo legítimas, portanto, as aspirações de 1822. Em segundo lugar, tal
interpretação procurava esvaziar a legitimidade dos movimentos
separatistas, unificando, em uma única categoria nacional, o conjunto de
habitantes dispersos pelas várias regiões do Império, contribuindo assim
para a formação de uma identidade brasileira diferenciada daquela do
antigo colonizador.

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Mas o sentimento de ser “diferente” em relação aos antigos metropolitanos era abordado pelos intelectuais de maneira contraditória.É bom ter sempre em mente que, tal qual o imperador, boa parte da elite monárquica descendia de portugueses. Como se não bastasse isso, romper totalmente com o passado significava romper com os laços europeus, laços que, segundo o ponto de vista de muitos, coloriam o
passado brasileiro com tintas de civilização.

No texto elaborado por Martius, que durante décadas serviu de guia
a respeito de “como se deve escrever a história do Brasil”, o tema do
contato das três raças é explorado de maneira exemplar. Nele, a
contribuição portuguesa para a formação da nacionalidade brasileira é
associada a instituições políticas, econômicas e religiosas; em outras
palavras, às formas de vida civilizadas. Já a contribuição dos negros é
apresentada de maneira contraditória, havendo sucintas alusões aos
conhecimentos dos africanos em relação à natureza e, ao mesmo tempo,
a seus preconceitos e superstições.

Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade
positivamente diferente da portuguesa não seria propriamente a presença
africana, mas sim a indígena. Em relação a este segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar uma contribuição, mas sim indicar que eles eram “ruínas de povos”, ou seja, descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o
Novo Mundo e entrado em decadência, regredindo ao estado de
selvageria. Ora, essa sutil nuança em relação aos outros dois povos
formadores da nacionalidade brasileira tinha importantes implicações. Se
refletirmos um pouco, perceberemos que Martius transferiu para o futuro
a definição do que seria a contribuição indígena; dependendo dos rumos
tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos, essa contribuição poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses.Cabe lembrar ainda que, por essa época, os principais centros econômicos do Império contavam com uma população indígena residual.

Tal situação abria margem para a análise desse grupo enquanto
elemento já incorporado à sociedade brasileira. Haveria, assim, na
química simbólica da nacionalidade brasileira, um misterioso ingrediente
que, quando estudado com o devido cuidado, poderia revelar um
passado monumental, rival até ao europeu. Para os intelectuais vinculados a esse debate, a descoberta de vestígios de uma ou de várias complexas sociedades no território brasileiro era uma questão de tempo. Tal crença, por sua vez, resolvia,
por assim dizer, um dilema que a muitos assustava: se os portugueses
eram a única fonte de comportamento civilizado da nossa índole nacional,
quais seriam, ao longo do tempo, os resultados do rompimento com a
Metrópole? Haveria um retrocesso? Assumir uma identidade não branca,
no mínimo, abalaria a autoestima dos súditos da nova nação. Afinal,
quais seriam as razões para os brasileiros se orgulharem de ser brasileiros?!

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Ora, é justamente nesse ponto que a apropriação de uma tradição
indígena, baseada na existência de uma fantasiosa e ancestral “alta
cultura”, desempenhou um papel central na “química” da nacionalidade.
Aos índios podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao negro,
permitindo-lhes rivalizar com os brancos. Da ótica do pequeno grupo de
intelectuais que, na época, refletiu a respeito da identidade nacional
brasileira, os primeiros habitantes do Brasil passaram a ser vistos como
portadores de valores que até os portugueses da Época Moderna,
marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais, haviam
perdido. Para os autores que adotaram esse tipo de concepção, o
mundo indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura
do mundo antigo, valores que não existiam mais nas sociedades
contemporâneas. A tradição indígena – ou a invenção dessa tradição –
fornecia, por assim dizer, os ingredientes que faltavam para fazer do
brasileiro um ser diferente do português, mas nem por isso inferior.
Boa parte da literatura brasileira do século XIX, como as clássicas
obras produzidas por Gonçalves Dias e José de Alencar, estende raízes
nesse intricado debate.

Nas primeiras décadas do século XIX, observamos no Brasil o florescimento do romantismo. Em linhas gerais, os românticos caracterizavam-se pelo ecletismo filosófico, propondo criar um meio-termo entre ciência e religião; estranha combinação que, pelo menos entre alguns autores da época, desdobrava-se em uma aproximação da ciência com a literatura e a poesia. O romantismo também fazia oposição à ideia de que as sociedades tinham a mesma origem, evoluindo da mesma maneira, ou ainda que a história humana fosse guiada por algum objetivo, como aquele relativo à busca do progresso ou da liberdade. Ao contrário das teorias evolucionistas do século XVIII, os românticos não classificavam as nações como atrasadas, mas sim como diferentes entre si.

Ao considerar a nacionalidade como algo a ser descoberto, o
romantismo em muito contribuía para a superação intelectual da
experiência colonial. Daí, inclusive, a busca pelo passado indígena.
Justamente por não se saber ao certo a origem dos índios, as
descobertas arqueológicas que estavam para ser feitas poderiam sugerir
novas formas de entender e de valorizar a identidade nacional brasileira.
Cabia aos intelectuais aprofundar os estudos e criar meios pedagógicos
de sua divulgação. Misturando arqueologia com poesia, linguística com
romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro. – Mary del Priore.

indiadb

 

“Índia”, de Debret.

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