Últimos suspiros (o desabafo de D. Leopoldina)

Artigo de Mary del Priore publicado pela Revista de História da Biblioteca Nacional na edição de agosto, que traz um dossiê sobre a nossa primeira imperatriz.

Fraca e à beira da morte, a esposa de D. Pedro I conseguiu realizar o último desejo: falar desaforos à arqui-inimiga

Não houve festa no primeiro ano de aniversário do futuro D. Pedro II. Em vez disso, no dia 2 de dezembro de 1826, boletins médicos davam conta da grave situação em que se encontrava sua mãe, a imperatriz Leopoldina. No dia 3, eles anunciavam febre, evacuações biliosas, pouco sono, “tosse gutural teimosa”, “algum tremor de mãos” e “meteorismo” (acúmulo de gases). Na noite do dia 4, Leopoldina teve pesadelos e “assaltos espasmódicos”. Chamou os criados da família imperial e pediu-lhes perdão se estivessem ressentidos com algo que ela não soubesse. Na madrugada do dia 5, ela sofreu “treze evacuações biliosas com mau cheiro”. No sexto dia, Leopoldina começou a se desfazer em líquidos. No dia seguinte, resolveram os médicos aderir a outro tipo de medicação: cânfora, éter, vinho quinado e “vesicatórios na nuca”.

 

Nesse dia, a Irmandade de Nossa Senhora da Glória organizou procissão e o esquadrão de cavalaria de Minas Gerais uniu-se aos moradores em preces, em Mata-Porcos. Chovia no Rio de Janeiro, e os súditos, com vestes ensopadas, choravam. No oitavo dia, Leopoldina começou a suspeitar dos remédios que lhe davam. Delirava, amaldiçoando a amante do marido. Atribuía-lhe poderes de feitiçaria negra. Reagia com gritos ao vê-la. Os sentimentos da submissa imperatriz, contidos por tanto tempo, explodiam. Foram anos em que dividira a cena com a paulista, escondendo sob uma capa de cordialidade o ódio e o desprezo que sentia. No dia 9, mencionou-se a expulsão dos restos de placenta. Piorava de hora em hora. Na tarde do dia 10, o capelão foi chamado para ministrar-lhe a extrema-unção. O barão de Mareschal, ministro diplomático da Áustria e um dos que podiam ficar no quarto da imperatriz, acrescentou que, “quando o Bispo começou a recitar a prece dos agonizantes, Sua majestade se encontrava em estado convulsivo, o abatimento aumentando a cada instante, o que somente lhe permitia gemer fracamente”.

 

O 17º boletim trouxe a notícia: “pela maior das desgraças se faz público, que a enfermidade de Sua majestade e a imperatriz resistiu a todas as diligências médicas empregadas com todo o cuidado por todos os médicos da imperial Câmara. Foi deus Servido chamá-la a Si pelas dez horas e um quarto.” Nenhuma palavra oficial sobre o aborto de um feto do sexo masculino de três meses. As informações finalmente alcançaram o marido. “Minha pena até se recusa a escrever as palavras”, diziam as primeiras linhas de uma carta coberta de cinzas e assinada por frei Arrábida. “A virtuosa imperatriz Leopoldina não está mais neste mundo.” Apagava-se a piedosa, a santa, a devota austríaca.

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Não se sabe quando, mas, acamada, Leopoldina ditou uma carta endereçada a Louison: a última. Traçou-a a marquesa de Aguiar, sua camareira. O tom de lamento era o mesmo da correspondência que a jovem alimentara durante anos, sem respostas. Sim, ela era capaz de amargura. E deixou um testamento de infelicidade: “Minha adorada mana, Reduzida ao mais deplorável estado de saúde e chegada ao último ponto de minha vida no meio dos maiores sofrimentos, terei também a desgraça de não poder eu mesma explicar-vos todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam em minha alma, minha mana. Não vos tornarei a ver! Não poderei outra vez repetir que vos amava, que vos adorava! Pois, já que não posso ter essa tão inocente satisfação, igual a outras muitas que permitidas me não são, ouvi o grito de uma vítima que vos reclama não vingança, mas piedade e socorro do fraternal afeto para inocentes filhos que órfãos vão ficar em poder de si mesmos ou das pessoas que foram os autores das minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho.”

Ela, que sempre fora resignada e muda, mergulhada numa tristeza que a deixava à beira da loucura, não tinha só a preocupação de alertar a família para os riscos que corriam os filhos. Afinal, eles foram sua única fonte de alegria e razão política do casamento. Aos 29 anos, mãe de 5 filhos vivos, a moribunda acusava:

“Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito, por amor de um monstro sedutor me vejo reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a prova de seu total esquecimento a meu respeito maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças. Muito e muito tinha a dizer-vos, mas faltam-me forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte.”

Pela última vez, confessava sua solidão e abandono. A que fora relegada pelo marido, mas, também, pela própria família. Se, publicamente, não reagira ao escândalo, usara a privacidade de uma carta para acusar o companheiro e sua amante. Ela poderia ter escrito como o poeta: “Eles me mataram.” O lamento de Leopoldina registrava, pela última vez, sua luta. Luta por um amor unilateral, em que tudo virara armadilha. Depois de tanto cansaço, poderia, enfim, dormir um sono de criança. Nas últimas correspondências, dizia-se arrependida de ter casado.

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Contou Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, que D. Pedro sentiu o golpe. Apesar de atarefado em meio a mapas, tropas e projetos de campanha, seu amigo recebeu a notícia com “profunda mágoa”. “Tremeu e arrancou os cabelos.” A comitiva que o acompanhava reuniu-se. Em sua correspondência, o Conselho de ministros foi mais específico. Depois de apresentar pêsames, confessava-se no dever de comunicar que a jovem imperatriz, em seus delírios, deixara perceber as causas de seu mal. Eram de ordem moral: desgostos e ressentimentos. A opinião pública já tinha conhecimento desses fúnebres queixumes ditos no momento de sua despedida: “Tendo chegado ao conhecimento público, a quem nada pode ser oculto em tais circunstâncias, incitaram-no a grandes maledicências com ameaças de vingança.”

No dia 4 de janeiro, a nau D. Pedro I largava de Santa Catarina, trazendo a bordo o viúvo. Não se sabe o que deu na amante, Domitila, mas, no auge da crise, ela quis entrar na câmara da doente. “a concubina deu provas de imprudência e loucura”, registrou Mareschal. “Seus ares imperiais ao atravessar os cômodos, como se estivesse tomando posse, e o tom arrogante e escandaloso de seus lamentos fizeram com que a dama de companhia incumbida, segundo os costumes, de presidir a consulta dos médicos, não a recebesse.” Conseguiram barrar-lhe a passagem, mas Titília, por sua vez, não deixou que a jovem mãe, em agonia, visse seus filhos.

A notícia correu sobre um rastilho de pólvora. A aparência do povo não era mais desordenada, curiosa, inquieta. Era ameaçadora. Queria vingança contra aquela que era considerada a causa da morte da querida imperatriz. Corria que a concubina se mancomunara com o cirurgião-mor para envenenar a imperatriz; que o verdadeiro príncipe tinha sido trocado pelo bastardo. Cartas anônimas agora eram endereçadas aos ministros. Estes reagiram, falando em afastar Titília da corte. Dois tiros foram disparados sobre um dos cunhados da marquesa de Santos, o coronel Oliva. Em fúria, a multidão dirigiu-se a São Cristóvão. A casa da marquesa foi cercada e apedrejada. Chamaram-se reforços. Vieram patrulhas de cavalaria proteger os muros e portas do palacete.

Por carta, a favorita não perdeu tempo em contar ao amante que fora destratada pelos ministros e pelo frei Arrábida. Que fora barrada à entrada do quarto de Leopoldina em seu leito de morte. O imperador não perdeu tempo em consolá-la:

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“Minha querida filha de meu coração e minha amiga. (…) Eu tomo nojo [luto] por oito dias, e esta é a única razão que faz com que eu não vá logo. (…) Pedro I que é teu verdadeiro amigo saberá vingar-te de todas as afrontas que te fizeram ainda que sua vida lhe custe. É ao mesmo tempo com todo o gosto, e verdade que tenho o prazer de poder dizer com toda a franqueza e contentamento que sou o teu mesmo amante, filho e amigo fiel constante, desvelado, agradecido e verdadeiro, digo outra vez, amante fiel.”

Se por um lado o povo culpava Domitila, por outro santificava Leopoldina. Os jornais cobriam-na de adjetivos: virtuosa, bondosa, gentil. Enterrava-se a imagem da dona de convicções hereditárias: monarquia absoluta, autoridade real e obediência dos súditos eram princípios sacrossantos que a Habsburgo levou embora consigo. as folhas contavam também como a população reagiu: “gemia o clero ao pé do altar”, choravam famílias no interior de suas casas e mesmo os estrangeiros não escondiam as lágrimas. Do sobrado à senzala, do comércio ao zungu, onde se reuniam escravos, das ruas às estradas, o povo chorava. a cidade-porto em permanente bulício cobria-se de luto. Silenciavam as ruas, sem os gritos das vendeiras e dos cativos prestadores de serviços, sem o peditório de mendigos e de irmãos de confrarias, sem o canto dos presos que carregavam água ou dos escravos carregadores de café.

No curto espaço de tempo que foi de março de 1826 à sua morte, D. Leopoldina foi, além de imperatriz do Brasil, rainha de Portugal. Entre seu casamento e a independência do Brasil, encontrou-se princesa do Reino Unido. Nenhum dos títulos lhe trouxe alegrias.

Civilidade, educação, compostura, importadas de uma das mais refinadas cortes europeias, iam-se para debaixo da terra com o corpo sofrido de Leopoldina. Certa maneira de ser, baseada na contenção dos sentimentos e no autocontrole em curso na vida burguesa que se forjava além-mar, consumia-se. Sob o sol dos trópicos, os hábitos eram outros. – Mary del Priore. (publicado na revista de História da Biblioteca Nacional, edição 107 – dossiê: Leopoldina: a Imperatriz da Independência).

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Domitila, a Marquesa de Santos; grande rival de D. Leopoldina (com os filhos).

8 Comentários

  1. José Emilio Petres
    • FREDERICO RODRIGUES NOGUEIRA
  2. Nair Miscena Rigo
  3. Alessandro
    • FREDERICO RODRIGUES NOGUEIRA
  4. Jhones Rodrigues
  5. Mayara Carrobrez
    • FREDERICO RODRIGUES NOGUEIRA

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