Família: da superproteção ao “filhocentrismo”

           A segunda metade do século XX revela transformações importantes. Da preocupação religiosa e salvação da alma na década de 30, se passa a uma visão edênica da criança de 50 para se concluir que educar é preparar para o futuro, nos anos 80. Educar seria então construir um indivíduo adulto independente, capaz, competitivo e emocionalmente “equilibrado”. Para isso recorre-se a profissionais especializados e os pais são constantemente chamados a participar, orientar e contribuir com sua presença junto aos filhos.

          O papel masculino, então, mescla-se definitivamente ao feminino, explica a pedagoga Michele Candiani Santos. Da imagem piedosa de São José, presente no discurso da Igreja Católica na República Velha, passa-se a um ideal de paternidade no qual a delicadeza, a pureza, os altos ideais morais e sociais, o cultivo da intimidade e felicidade no lar são características masculinas, e não mais exclusivas das mulheres. Há uma valorização do privado, e um convite é feito ao homem: que direcione cada vez mais sua atenção ao lar e a família, pois é aí que está sua felicidade. A valorização do íntimo, do privado, do pessoal e familiar, produto típico do capitalismo individualista, numa tendência que já dava mostras de si, na imprensa, desde 1943, apresenta-se no seu auge. A partir dos anos 80, a “família igualitária” sobrepôs-se à patriarcal, sobretudo nas classes médias e identificadas com a modernização.

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            Some-se a isso a valorização do consumismo e da Psicologia Clínica, voltada para a saúde emocional, ambas reflexo da influência norte-americana nas classes médias brasileiras. Com a expansão do mercado de bens de consumo, a família, e nela a criança, passaram a ser grandes consumidores em várias áreas: saúde, lazer, cultura, educação, psicologia, etc. A imagem da criança consumista passa a ser veiculada pela televisão. É o que ela deseja e sua família compra para ela, que lhe proporciona status e prestígio. A criança é também símbolo de ascensão social.

Em meio a tantas transformações não faltavam problemas. O advogado e educador Edgar Flexa Ribeiro alertava: a vida se transformara radicalmente. Mães trabalhando fora de casa, vida urbana intensa, fim das refeições comuns. E na falta de estar com os filhos, os pais preferiam cobrir-lhes de vontades. Nascia o “filhocentrismo”, “forma nova e pouco saudável de lidar com os filhos”. O fenômeno guardava parentesco distante com a super-proteção, mas, era diferente. No primeiro caso, os pais se sentiam culpados por não poder oferecer o melhor. No segundo, eles se anulavam, sentindo-se incapazes de dizer não – explicava Flexa Ribeiro. “Quando a criança passa a ser a única razão de ser do casal, e atender o pequerrucho, sempre, sem limitação, passa a ser uma fixação, estamos lidando com algo muito diferente. Não se está propondo que pais abandonem os filhos, ou seja, que esqueçam que lá em casa tem alguém que precisa de atenção. Quer-se aqui apenas sugerir que os pais mantenham vida própria e zelem por ela. Até para que seus filhos saibam fazer o mesmo, quando chegar a hora deles”. Era preciso estabelecer limites, sinalizar o espaço da criança.

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Outro problema: divórcios e separações. Em agosto de 1998, segundo Veja, já eram 400 mil por ano. Filhos passavam a viver sem a presença constante de um dos pais e a lidar com situações, por vezes, traumáticas: morar em duas casas, mudar de escola, bairro ou cidade, ganhavam “irmãos”. Expressões como “desquitados”, padrasto ou madrasta caíam por terra, trocados por “o marido da mamãe” e “a mulher do papai”. Vivia-se numa “família reconstituída ou mosaico”. “Mais honestas”, segundo psicólogos, pois as relações se estabeleciam a partir de afetos, e não de convenções sociais. Havia muitos debates: o divórcio conduziria às drogas e a depressão? Ou as crianças podiam sair apenas chamuscadas do “trauma”? Vômitos, cólicas, insônia e inapetência podiam surgir nos pequeninos. “Stress”, nos mais velhos. As respostas, porém, viriam da relação que os filhos tinham com os pais e das habilidades dos últimos para lidar com as dificuldades dos primeiros.

  • Texto de Mary del Priore.
"Cena de Família", de Adolfo Augusto Pinto (1881).

“Cena de Família”, de Adolfo Augusto Pinto (1881).

 

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