Escravidão, amor, casamento e família

Uma história do amor na Colônia não poderia deixar de fora um grupo de protagonistas essenciais: nossos ancestrais africanos ou afro-descendentes. Graças ao trabalho de inúmeros historiadores, sabe-se, hoje que, tal como outros grupos formadores da sociedade brasileira, eles também souberam organizar suas famílias, zelar por suas proles, honrar seus velhos, zelar por seus lares e linhagens e, como disse, poeticamente Robert Slenes, “cultivar na senzala uma flor”. Os casamentos e uniões dentro das mesmas etnias – vale lembrar que a consciência étnica era forte – acotovelavam-se com os que reuniam africanos de origem diferente. Nem sempre era possível se casar com alguém da mesma procedência pois os senhores se encarregavam de misturar, nas suas propriedades, escravos de origem diversa. Temiam revoltas. Mas, de todo o jeito, e como explicam os historiadores Manolo Florentino e José Roberto Góis, o casamento proposto pela Igreja católica era conveniente aos cativos, pois evitava a separação dos casais; afinal, o deus dos católicos não aprovava a separação de cônjuges. O casamento de cativos também convinha aos senhores: os casais tinham menos motivos de queixas, nestas circunstâncias, promovendo – pelo menos, na aparência – a paz nas senzalas.

A formação das famílias afro-descendentes por meio de concubinatos e matrimônios variou muito. Nas áreas de mineração, por exemplo, a escassez de mulheres e a instabilidade e insegurança das comunidades tornava as relações estáveis incomuns. Nas áreas de plantation, relações dentro de um mesmo grupo, numa mesma fazenda, num mesmo engenho, ou com eleitos escolhidos na vizinhança, tornavam os encontros mais fáceis. Era, também, mais provável que o escravo encontrasse sua parceira em grandes fazendas e latifúndios monocultores do que em pequenas roças. Nas fazendas e engenhos o acesso aos padres era relativamente garantido, fora delas, ele era presença rara e cara. Eles portanto, mais se casavam, na primeira do que na segunda situação.  De qualquer forma, centenas de pesquisas demonstram que o concubinato e as ligações consensuais estáveis e de longa duração se constituíam numa realidade comum entre escravos, assim como entre livres, especialmente, roceiros pobres; o casamento legal, “de papel passado”, interessava especialmente as famílias proprietárias, preocupadas com a transmissão do patrimônio, logo dos escravos que dele faziam parte.

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Ainda não se sistematizaram estudos para avaliar em que medida a escolha da companheira teria influenciado uma nova composição social, baseada na mestiçagem. O historiador Herbert Gutman, por exemplo, demonstrou que esta era uma regra nas colônias hispânicas. Casar-se com uma mulher mulata livre ou com uma mestiza, “melhorava a condição social dos filhos como atenuava o grau de pigmentação, um dos fatores de sucesso” na luta pela ascensão, fora dos grilhões do escravismo. Homens negros escolhiam mulatas para casar e mulatos escolhiam parceiras de origem não africana. Entre nós, os índices de ilegitimidade altíssimos (aproximadamente 90% para filhos de escravos e 60%, para os de forros) mostram que é difícil analisar quem casava com quem, uma vez que as uniões eram vividas, sobretudo nas aéreas urbanas, longe da Igreja. Sendo assim, não temos documentos para examinar a questão.

A escolha dos parceiros era, contudo, presidida por um critério seletivo no que concernia à naturalidade. A comprová-lo um diálogo que o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire manteve com um escravo. Perguntado se era casado, “mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica sempre só, o coração não fica satisfeito. Meu senhor me ofereceu primeiro uma crioula; mas não a quero mais. As crioulas desprezam os negros da costa. Vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua”.

Quando aumentava a importação de africanos, os crioulos se fechavam entre si. A entrada de novos homens era sentida como uma ameaça. Apenas um entre cinco casamentos reunia pessoas de etnias diferentes. Este padrão vigorou no Rio de Janeiro e no Recôncavo baiano Mas o aumento do tráfico no século XIX, acabou por rompê-lo, pois aqui chegavam cada vez mais indivíduos vindos de diferentes origens. Florentino e Góes observaram agudas diferenças de idade entre os cônjuges. Homens velhos se casavam com moças, – como, aliás, se fazia no Golfo do Benim – e moços, com mulheres décadas mais velhas. Os mais velhos, prestigiados na tradição africana, dominavam o mercado de mulheres férteis; os cativos jovens, excluídos do acesso a estas, acabavam com mulheres em idade bem superior.

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Quanto ao tempo de amar dos grupos afro-descendentes, vale lembrar que os sistemas de nupcialidade não eram idênticos. Há diferenças entre casamentos de livres e de escravos. Os primeiros podiam se casar quando quisessem ou pudessem. O calendário de casamentos da população livre nunca foi, contudo, homogêneo e ele era eqüitativamente distribuído pelos meses e dias do mês. O fenômeno sofria interferências de sistemas de religiosidade popular, mitos e crenças, assim como do calendário agrícola ou litúrgico. O chamado “tempo proibido” ou tempo de penitência, quando a Igreja desaconselhava toda manifestação de alegria e qualquer tipo de festividade coletiva, era observado em nossa população, sobretudo em áreas agrícolas: proibe-se o Advento e a Quaresma; aí o casamento caia quase a zero. Evitavam-se alguns dias para celebração das núpcias: sexta-feira, por exemplo, era tido por nefasto, desde os tempos medievais; o dia da Paixão e Morte do Cristo, considerado aziago pois trazia dores.

Já os escravos dos plantations  estavam sujeitos às atividades de semeadura e colheita. O calendário agrícola tinha grande influência, na realização de rituais religiosos. Roças de alimentos com poucos escravos, por exemplo, demandavam ocupação de toda a família, inclusive de filhos e filhas casadoiros, atrasando ou antecipando casamentos. A escravaria se casava na capela das fazendas em cerimônias seguidas de comezaina, batuques e uma “função” musical. A cerimônia seria freqüente? Um observador, o viajante suíço J.J. von Tschudi, em 1860, responde: “É muito raro haver entre os negros casamentos celebrados na igreja, mas o fazendeiro permite que os pares que se unem segundo oportunidade ou sorte, vivam juntos, sendo que o pronunciamento do fazendeiro basta para que eles se considerem esposo e esposa, numa união que raras vezes irá perdurar a vida inteira. As pretas em geral possuem filhos de dois ou três homens diferentes”.

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Para além do preconceito manifesto, Tschudi certamente desconhecia as tradições africanas com referência ao que a antropóloga Esther Boserup chamou de “uma economia da poligamia”. Muitas mulheres e muitos filhos, no continente de origem, era considerado sinal de riqueza, fecundidade e felicidade. Todos juntos, trabalhavam a terra do patriarca da família. A virilidade era atributo fundamental de honra de um homem. Já a fecundidade das mulheres, louvada em todas as formas de arte: escultura, dança, pintura. A esterilidade feminina era vivida como uma maldição. “Sem filhos, estás nu”, dizia um antigo provérbio ioruba. Os homens lutavam pela esposa mais fecunda. O casamento, na África atlântica, por exemplo, podia tomar várias formas. Do rapto da parceira por um indivíduo mais audacioso, ao pagamento de dotes como forma de indenização à linhagem familiar da mulher. Tal sistema permitia aos ricos e poderosos aumentar consideravelmente o número de esposas, fazendo da poligamia um privilégio. O grande número de esposas permitia aos maridos respeitar  o tabu da abstinência sexual, ligado à amamentação dos pequenos, quando de um nascimento. É muito provável que, tais tradições, profundamente arraigadas, tivessem se transferido para a Colônia, incentivando um tipo de família diversa daquela que tinham os portugueses. Ou, apesar dos casamentos de escravos com festa e batuque, diferentes da que desejasse a Igreja. A possibilidade de recriar hábitos em terra estrangeira foi uma das características destes nossos avós africanos . De qualquer forma, casamentos que não duravam e filhos de pais variados não era absolutamente característica dos grupos afro-descendentes, mas da sociedade como um todo. – Texto de Mary del Priore.

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Johann Moritz Rugendas.

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