Entre doçuras e castigos: o ensino no início do século passado

           As crianças aprendiam a escrever e ler em casa. A primeira professora era a mãe. Fora da casa, e à medida que escolas privadas e públicas ou grupos escolares rurais se multiplicavam, as mães eram substituídas por mestras. Elas eram chamadas de “professorinhas ou normalistas” que, seguindo os pressupostos pedagógicos da época deveriam ser menos severas e mais sorridentes. Objetos de inspiração, as jovens foram cantadas em prosa e verso pelo cancioneiro dos anos 30: “Vestida de azul e branco/ trazendo um sorriso franco/ num rostinho encantador/minha linda normalista/ rapidamente conquista/ meu coração sem amor”. Considerada uma “operária divina”, a “professorinha” devia levar vida correta, ser limpa e executar o papel regenerador que se esperava das mulheres então. Laura Rodrigo Octávio conheceu de perto uma delas, por acaso, sua irmã Marietta:

            “Era no Bexiga, bairro distante, povoado por italianos separado da Vila Buarque pela várzea onde passa hoje a avenida 9 de julho. Lembro-me como se fosse hoje: a menininha num vestido novo cor de rosa, com faixa de fita de cetim, duas tranças caindo nas costas. Era fevereiro de 1900: Marietta seria a professora; não obstante, a aluna se manteve tão obediente à ordem dos “braços cruzados nas costas” que ao fim do dia, tinha-os marcados das dobras do vestido…Eu tinha loucura para aprender, mas já era tímida diante de gente nova: não mudei. A classe grandona, carteiras individuais e Marietta me dirigindo: que satisfação! A maioria eram meninas italianas, gente de classe modesta, daquele bairro…Tudo se ensinava conversando, e Marietta se revelou extraordinária, metendo naquelas cabeças xucras das italianinhas, não só as primeiras letras, como cantos, lindas músicas de autoria do maestro Elias Lobo. Nunca iniciamos um período de aula sem uma canção. Depois foram as aulas de trabalhos manuais nas quais Marietta conseguiu de suas alunas uma exposição de camisas, peça de roupa que agora se ignora, e que era, no tempo, a primeira peça do vestuário feminino. Havia aulas com tornos, tecelagens e a geografia física ensinada em grandes tabuleiros de areia! Como era divertido!”.

Apesar de gentil, pressupunha-se que a educadora tivesse uma função corretiva sobre as crianças tidas como desviantes ou inadaptadas. Embora condenado como coisa do passado, o castigo corporal, nas suas inúmeras variantes, não deixou de ser exercido. Zélia Gattai o conheceu:

Minha professora não batia nos alunos, nem os punha de joelhos sobre milho ou feijão; tentava manter a disciplina na classe utilizando-se de réguas – mantinha sobre a mesa pelo menos uma dezena de réguas enfileiradas – que atirava na cabeça da criança faltosa com uma técnica muito especial: segurava numa das pontas da régua, fazia pontaria e… Jamais errava o alvo.”

A régua era o menor dos castigos. A bola de cera, presa por um barbante e arremessada à cabeça da criança arrancando-lhe mechas de cabelo era mais temida, do que os bolos, beliscões, bordoadas e outros castigos que os pequenos recebiam, na escola, mas, também, em casa.  (…)Embora se falasse muitos das normalistas, muitos homens estavam também no exercício da profissão. Eram mestres como conheceu Zé Lins: “O mestre era um negro vindo do sertão, homem de calibre, homem que não abria a boca para sorrir. A palmatória era a sua vara de condão”. E mais tarde: “Mandaram-me para a escola de João Cabral, aula pública para meninos. Morava João Cabral na própria casa da escola. Era uma sala cheia de bancos onde só havia uma cadeira de palhinha que viera do engenho para mim. Havia meninos de pé no chão, a maioria filhos de gente da vila. Poucos de fora”.

Na pequena Rio Pardo, Otávio Gonçalves Gomes tinha um professor vindo de longe: “Nortista do Maranhão, tinha o professor Pimenta um nome pomposo. Francisco Augusto de Aguiar Pimenta. Era letrado, bem falante gostava de fazer discursos. Circunspecto, bem vestido: usava paletó e gravata. Nos dias chuvosos saía com guarda-chuva e nos dias de frio, usava uma capa preta, daquelas que tinha uma sobre-capa nos ombros, o que lhe dava um ar sinistro. Era o orador obrigatório das festas sociais. Tinha a mania das declamações. A mais famosa era uma poesia francesa, que ninguém entendia, claro. Imagine-se um lugarejo em que a maioria mal sabia ler e o nosso professor a declamar “Le Monde Marche”…A escolinha tinha seu ritmo normal. Só não havia exames finais.[…] Era a escolinha do “seu” Pimenta. O regime era o de antigamente: decorar e soletrar cantando: um mais um dois. Dois mais dois, quatro […] Havia a palmatória, a “santa Luzia” de cinco olhos – cinco furos. O terror da meninada; dos vadios, dos menos inteligentes, dos meninos rudos como se dizia. Rudos eram as crianças que tinham dificuldade em aprender.No sábado havia argüição com rodada de palmatória. Um aluno argüia o outro sobre a tabuada. O que não sabia, levava bolo de palmatória do outro. Havia aluna que apanhava de ficar de mãos inchadas. Não haviam sanitários. Os alunos saíam para satisfazer suas necessidades nos terrenos da esplanada da estação que eram, em grande parte, cobertos por bamburro. Quando um aluno saía, levava a pedra redonda que estava sobre a mesa. A ordem era sair um de cada vez. Os intestinos e a bexiga eram regulados pela pedra.”

Escolas primárias em casa ou em salas alugadas, com abecedário, a soletração, a tabuada como lições de rotina, as pequenas lousas individuais, o mobiliário escolar improvisado graças a barricas, caixões, pequenos bancos, alunos pelo chão estirados de bruços sobre papéis de jornal, eram o cenário que muitos memorialistas encontraram.

A educadora Clarice Nunes explica que os alunos eram matriculados pelo exame de dentes, quando não podiam apresentar certidão de nascimento. A troca de dentes de leite pela dentição constituía prova suficiente de idade escolar. A higiene, em muitas escolas era precaríssima como já se viu e não poucas se tornavam focos de doenças. Faltava água, luz e ar. Sobrava varíola, gripe, tuberculose, meningite. Muitas crianças se afastavam da escola porque tinham que trabalhar, mudar de endereço ou tinham medo de apanhar. Quem passou por tudo isso foi José Lemos de Sant´Ana, que, em memórias se perguntava:

Ainda se usa hoje o ensino da «caligrafia inclinada» após a «caligrafia vertical»? No meu tempo havia os caderninhos especiais. Usava-se a pena no.9 12 (100 réis cada) ou uma outra mais barata, de duas por cem reis, porém mais ordinária, que engarranchava ligeiro. Quando a pena «engarranchava», nós sabíamos «desengarranchar» enfiando a ponta da mesma, acertada sob a pressão do indicador e do polegar, na madeira da carteira. É um processo que só vendo para se aprender: com ele se conseguia fazer a pena retomar a funcionar per- feitamente. Tinta? Havia várias e houve muitas outras depois, mas, no meu tempo, só a tinta sardinha era considerada boa. Havia até uns folhetozinhos de propaganda que diziam:

«Que letra bonita

Que tem a Zizinha

Porque só escreve

Com tinta Sardinha».

            E os erros na copia ou no ditado? Copiar dez vezes a palavra tal ou qual, ou vinte vezes, cinquenta, cem ou até duzentas ou mais vezes, quando o aluno teimava em reincidir no erro.

            Não é preciso perguntar, pois já sei que não se usa mais: a arguição à palmatória. É, havia disso naqueles tempos. Não que o professor ou a professora usasse a palmatória, mas o próprio aluno no outro aluno. À pergunta feita e não respondida, a professora passava adiante, e o primeiro que respondesse certo tinha direito de dar um bolo de palmatória em cada um daqueles que não souberam. Daí a expressão, muito usada ainda – «deu a mão à palmatória» -, quando se quer dizer que uma pessoa errou e foi corrigi da por outra.

            Mas a palmatória também cantava nas mãos de alguns meninos, manobrada pela professora, quando o aluno era indisciplinado. Bem, para esses casos de indisciplina havia, não só a palmatória, mas ainda a régua – uma reguada no braço do aluno que estava a brincar, ao invés de prestar atenção à aula, era coisa normal – e o ajoelhar no chão ou ficar de pé de frente para a parede. Alguns professores chegavam até ao ajoelhar sobre milho – havia meninos terríveis! – e, até isso, com o acréscimo dos braços estendidos, segurando um livro em cada mão. Contado assim parece exagero. Pois não é exagero e esclareço mais: não vi isso em Pojuca, não. Vi mesmo em Salvador.

            Deixemos de lado, porém, esses exageros da educação e relembremos que, indo para a escola, em Pojuca, conduzíamos, cada um, uma «pedra» com seu respectivo «lápis de pedra», o caderno de escrita, o livro de leitura, a caneta com sua pena, o lápis, o caderno de desenho, a borracha, tudo isso na mão, seguro juntinho, porque na outra mão ia o tinteiro arrolhadinho e engastado numa caixa de «sabonete eucalol», só com o gargalo de fora. Sabe, tinteiro em mão de menino, na hora de desarrolhar e, depois de desarrolhado, na hora de molhar a pena, ele facilmente viraria se não estivesse dentro de uma caixinha, tão apropriada, chatinha, de fundo largo.

            – Zezito está soletrando, mas Mundinho já lê por cima.

            – Eu já tou recordando o primeiro livro.

            Por aquela época apareceram umas lapiseiras, um simples tubo onde se podia engastar o lápis que se adaptava perfeitamente. Pois bem, os meninos mastigavam pedacinhos de papel até formar uma massa umedecida, que era socada dentro da lapiseira, numa das suas extremidades, unida à madeira da carteira, apertada aí pelo fundo do lápis, através da outra extremidade livre. Em – seguida, mais massa umedecida colocada na outra extremidade. Agora, era só apontar a lapiseira na direção do alvo, empurrar para dentro, com o lápis, a última massa colocada, e, logo após certa pressão, estourava a massa encravada inicialmente na extremidade oposta, indo como um projétil direto ao alvo: o cangote de um colega ou a cara do mestre. Pode-se imaginar o tamanho do castigo, no último caso”.

 

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3)”, editora LeYa, 2017.
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