“E se nada der certo?” Tristes resquícios do passado

          Causaram polêmica as fotos de uma festa em um colégio de classe média alta em Novo Hamburgo, região metropolitana de Porto Alegre. O tema da brincadeira era “se nada der certo?”. A ideia era mostrar que os estudantes que não conseguem ingressar em uma boa faculdade têm um futuro desalentador: trabalhar como empregados domésticos, ambulantes, faxineiros, pedreiros, garis, atendentes de rede de fast food, vendedores, e assim por diante. E, pelo que fiquei sabendo, um tanto chocada, esse tipo de evento é muito comum nas escolas brasileiras, que acreditam que isso pode estimular os alunos a se sobressair, a serem “vencedores”. Um diploma, em uma boa universidade, livraria os jovens do “terrível” destino de exercer uma atividade considerada inferior.

        As imagens ofenderam muita gente, afinal a maioria da população, principalmente no momento atual, está lutando para conseguir ou manter seu emprego, pagar as contas e obter o mínimo necessário para sustentar a família. Muitos “diplomados” aceitam ocupações cujas exigências estão aquém de sua formação por falta de opções. Isso me fez lembrar do nosso passado colonial, quando a realidade era também muito dura, e a população tentava sobreviver, apesar das dificuldades, que eram muitas. Mesmo assim, era uma sociedade obcecada pelas aparências.

         Nesse contexto, os trabalhos braçais eram considerados degradantes pela nobreza colonial. Os escravos eram responsáveis por todas ações que exigissem algum tipo de esforço físico: eram as mãos e os pés do senhor de engenho, como descreveu Antonil. Qualquer trabalho “mecânico” era tido como vergonhoso. Os colonos queriam se igualar aos nobres portugueses e imitavam seus costumes. O horror ao trabalho braçal tinha origem no conceito português de nobreza: um dos requisitos para ser nobre era não exercer, nem ter parente ou antepassado que exercesse este tipo de ofício, além de não ter sangue mouro ou negro.

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         É curioso observar que havia algumas artes que eram consideradas “neutras”, ou seja, não eram “mecânicas”, como ourivessaria, pintura, escultura, entre outras. Existia assim uma classe intermediária em Portugal, que não era nobre, nem tampouco plebeia. A medicina era considerada uma ocupação nobre, mas os cirurgiões (incluindo os dentistas) estavam entre os profissionais menos valorizados. Maria Beatriz Nizza da Silva disseca estas questões no livro “Ser Nobre na Colônia”.

       No Brasil, os títulos de nobreza eram raros, pelo menos até a chegada da Família Real Portuguesa, em 1808, quando D. João VI começou a distribuir honrarias. Formou-se uma casta de “fidalgos”, geralmente sem título, mas com posses, disposta a provar a todo custo seu caráter nobre e distinguir-se da “arraia miúda”. Os excessos tornaram-se regra e contaminaram até as classes sociais mais baixas. Ninguém queria exercer qualquer coisa que lembrasse de longe trabalho ou esforço – estas tarefas eram deixadas aos escravos. Um bom exemplo, era o costume dos senhores e senhoras serem transportados por redes, cadeirinhas ou liteiras, carregados pelos servos.

Tais costumes chocavam os estrangeiros que passavam pela Colônia. Era comum que europeus se referissem ao Brasil como o “berço da preguiça”. Os homens se dedicavam a administrar o trabalho dos cativos. Mesmo os mais pobres, quando conseguiam juntar dinheiro, compravam escravos para “colocar a mão na massa”, como diríamos hoje. As mulheres mais ricas ficavam deitadas em suas esteiras, sendo abanadas pelas escravas e quase não se movimentavam. Talvez por isso, ficou tão cristalizada a imagem das robustas senhoras, vestidas com desleixo (como era hábito para ficar em casa), a gritar com as negras para que elas lhes trouxessem uma simples concha d´água ou um xale. Na verdade, nem todos podiam viver no ócio, mas a maioria tentava, ao menos, manter as aparências, rejeitando as atividades “mecânicas”.

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Aos cativos, cabiam as atividades consideradas “degradantes”, incluindo os serviços domésticos. Muitos deles realizavam serviços para seus donos (os escravos “de ganho”, como se dizia) e conseguiam juntar algum dinheiro para comprar sua liberdade. Os ofícios ligados à moda e à beleza, como corte e costura, por exemplo, se tornaram bastante procurados quando os portos brasileiros foram liberados para receber produtos importados, trazendo uma grande variedade de tecidos e outros produtos ligados à indumentária e à estética. A população “de cor” mostrou suas habilidades em ofícios como peruqueiros, modistas, alfaiates, bordadeiras, ourives e muitos outros, devido ao seu trabalho nas casas de famílias abastadas. Muitas mulheres pobres, forras ou não, sustentavam seus filhos vendendo quitutes nas ruas.

E muitas senhoras e senhores aparentemente respeitáveis viviam às custas do trabalho de seus escravos “de ganho”, inclusive da prostituição. Outra ocupação que era muito rendosa era ser traficante de escravos: parte da nossa “nobreza” sustentava seus luxos com esse comércio, que, se não era bem visto pela alta sociedade, era tolerado quando o traficante era rico. Esses negociantes costumavam se dedicar a outras atividades e, quando queriam se destacar na hierarquia colonial, se tornavam grandes proprietários de terra. Por sinal, havia também uma certa má vontade com os comerciantes, em geral. Ser nobre (mesmo sem título) no Brasil de então era para poucos, era necessário ter “cabedal”, como disse Antonil.

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         Hoje, vemos esses jovem reproduzindo a herança escravista de rejeição ao trabalho braçal, dividindo as ocupações entre “nobres” ou inferiores, reforçando estereótipos rançosos, enxergando na educação uma forma de se diferenciar do restante da sociedade. Mais uma das tristes “permanências” que fazem a História. E ficam algumas questões para pais, educadores e para os próprios estudantes: o que é “dar certo” na visão desses jovens? E como as escolas estão ensinando seus alunos a enxergar o mundo?

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti. 

 

Vendedores de angu, de Debret.

8 Comentários

  1. Josias Pimentel
  2. Nubia Gonçalves
  3. Maria José Caldas
  4. Adolfo Brás Sunderhus Filho

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