É possível fazer a História do Amor e da Intimidade?

Sabemos que homens e mulheres, no passado, nutriam ideias totalmente diferentes das nossas concepções de vida e do mundo, hoje. Tais conceitos inspiravam não apenas seus atos e iniciativas, mas também seu raciocínio e escritos. Eles se reforçavam por meio de ideias análogas que professavam seus contemporâneos, e são estas mesmas que nos distanciam tanto quanto possível de nossos avós. É possível entendê-los? Podemos tentar, lembrando sempre que uma coisa é certa: um homem do século XVIII, por exemplo, tem que ser inteligível, não em relação a nós, mas em relação às pessoas que os cercavam. Não são as nossas concepções que servirão de referência, mas as suas.

Há pelo menos quinze anos, historiadores fizeram da sexualidade um objeto de história aproximando-se, graças aos arquivos judiciários, a literatura, a correspondência e documentos de toda a sorte, das práticas amorosas e sexuais de nossos ancestrais. A vida privada com tudo que ela envolve de sentimentos, não escapou, em todo o mundo, como entre nós de uma lenta evolução de mentalidades e de atitudes. Um prato cheio para pesquisadores curiosos! No passado, as pessoas “não davam” mas, se davam. Hoje, elas “dão”, mas, não se dão. Se a revolução sexual foi, antes, considerada uma libertação frente às normas de uma sociedade puritana e conformista – a burguesa e vitoriana – hoje, ela promove uma sexualidade mecânica, sem amor, reduzida à busca do gozo. Já há quem diga que, tal banalização está levando a um contra-ataque: uma corrente neoconservadora, nascida nos anos 90 nos EUA, começou a reagir contra as derivas do liberalismo sexual. Não iremos tão longe.

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Existem riscos e dificuldades incontáveis para fazer “falar” do amor o povo simples, analfabeto, formado pelos segmentos mais desfavorecidos de nossa sociedade. Gente humilde, sem letras, morando em simples palhoças, à beira de praias ou embrenhada pelos matos, curvada sobre suas rocinhas de alimentos e mais tarde, vendendo serviços na cidade grande. Recuperar o que sentem e o que pensam sobre o amor é tarefa complicada para o historiador que só os surpreendes graças à documentação da Inquisição ou processos movidos pelo Estado, nos quais emprestam a voz a escrivãos e juízes. Isto sem falar na massa silenciosa constituída por escravos, cujas tradições orais se perderam no tempo. Trabalharemos, então sobre restos ou fiapos de informação deixados, como poeira, nos documentos históricos, além de usar o trabalho paciente de colegas que nos antecederam, visitando temas vizinhos ao do amor. Temas como a família, a privacidade e o sexo.

Uma dicotomia atravessa, todavia, a maior parte das fontes documentais. A que opõe o amor nas práticas e o amor idealizado. O primeiro enraizado nas realidades de uma sociedade biológica e culturalmente mestiça, marcada pelo escravismo e por formas patriarcais de dominação. O segundo, baseado na sublimação, capaz de alimentar um imaginário particular sobre o sentimento amoroso que encontramos, sobretudo, na literatura. Nele, a beleza sustenta o amor na sua dimensão imaginária, ficcional. E não é este imaginário que habita todo o amor? Ele não “é  sempre lindo”? A pesquisa das intimidades no passado é coisa difícil. O amor não deixa restos, fósseis, marcas. Ele apaga suas pegadas não deixando ao interessado mais do que  ilusões ou evocações, muitas vezes, fugazes. Mas se o trabalho de reconstituição deste passado parece árduo, e se  ele é, de todas as tarefas do historiador, a mais difícil de realizar, mais uma razão para enfrentá-lo. Com todos os seus riscos e perigos.- Mary del Priore.

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Nicolas-Antoine Taunay.

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