A partir do final do século XVII, surgiram os primeiros relatos em língua vernácula sobre os males que atingiam os habitantes, no Brasil. O médico cristão-novo, Simão Pinheiro Morão, publicou em 1683, seu Tratado único das bexigas e do sarampo; João Ferreira da Rosa foi pioneiro em descrever a febre amarela no seu Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, em 1694 e Miguel Dias Pimenta, cirurgião-mascate sua Notícia do que é o achaque do bicho, de 1707. Eram todos portugueses que, emigrados para a Colônia, seguiram o passo de hispânicos no México ou Peru. Ou seja, entenderam que era preciso assimilar as substâncias tropicais às formas europeias de vida. Não havia saída sem o diálogo de sabres tão diferentes.
A varíola, “corrupção pestilenta”, “peçonha” ou “bexigas” atacou desde o século XVI, registrada que foi, com pânico, por Anchieta e Simão de Vasconcellos Era mal terrível: “Gastada a maior parte da escravaria […] tirou a vida de três partes dos índios […] estrago miserável”, clamava Vasconcellos. Teria chegado nos primeiros tumbeiros, para os engenhos de Pernambuco e São Vicente? Tudo indica que sim. Pelo menos assim o considerava Guilherme Piso, que atribuía sua origem a Angola ou o Reino de Arda. Em suas cartas, os jesuítas dizem que os primeiros variolosos chegaram a Bahia numa nau que aportou em 1561, mas a epidemia atingiu seu clímax apenas em 1563, matando ¾ dos índios aldeados e catequizados. O Padre Leonardo Vale chamou a epidemia de “flagelo do Senhor” e assim a descreveu: “Umas varíolas ou bexigas tão asquerosas e hediondas que não havia quem as pudesse suportar com a grande fetidez que delas saía, e por esta causa morriam muitos ao desamparo, comidos de vermes eu das chagas nasciam e se engendravam em seus corpos, em tanta abundância e tão grandes que causavam horror e espanto a quem as via”.
“Havia muitas mulheres prenhes que tanto lhes dava o mal, as debilitava de forma que botavam a criança, ficando-lhes as páreas de que procedia fedor insofrível até que morriam […] Finalmente, chegou a coisa a tanto que já não havia quem fizesse covas e alguns se enterravam pelos monturos e arredor das casas e tão mal enterrados que os tiravam os porcos”.
Em pânico, os índios fugiam dos aldeamentos para despistar o “demônio da varíola” e entravam nos matos onde permaneciam andando em círculos, deixando para trás os familiares doentes e os padres que não tinham qualquer ajuda para enterrar os mortos. Em 1662, a varíola dizimou tantos negros e índios em Pernambuco que a lavoura canavieira ficou estagnada.
Para combater a varíola e, portanto, a mortalidade recomendava-se desde “untar bexigas com a banha que as parteiras acham nas crianças quando nascem” ou “passar sebo dos rins de bode”, nas bexigas a “sangrar as pústulas e extrair os bichos gusanos que ferviam em seus corpos como formigas num formigueiro”. A dieta alimentar dos doentes se fazia a base de caldo de galinha e marmelada. Arroz, farinha e feijão eram adquiridos pela Santa Casa de Misericórdia para bexiguentos pobres.
Além disso, empregou-se a delação de doentes que deviam ser isolados, como medida para evitar contaminação. Alarmada com o surto de varíola no litoral, a Câmara de São Paulo, em 1666, organizou um cordão sanitário para isolar o planalto com ordens para deter à bala os que tentassem rompê-lo. Certo “Agostinho Leitão, médico licenciado, avisava as autoridades haver visto um mulatinho varioloso em casa de Domingas Fernandes, sendo este condenado a três dias de cadeia e seis mil réis de multa por haver ocultado o caso”. Em 1774, SP, foi presa Josefa Ávila por tratar variolosos ocultamente em casa.
O Tratado de Morão é dividido em oito partes sobre causas, “castas”, contágio e cura das bexigas. Havia as “loucas ou brancas”, as “negrais”, as “pintas”, as “peles de lixa” e as “de olho de polvo” todas, em maior ou menor escala, resultantes de humores que em muitos casos “cometendo a sua malignidade ao coração, matam o enfermo”. A “peste” ou “febre pestilencial atingia grandes e pequenos e era “mal que se apegava”. Segundo Morão, o contágio não se fazia de pessoa a pessoa, mas de “parte a parte”, de local a local, provocado, entre outros, pela passagem de cometas no céu. O de 1664, “fez mais os seus efeitos nesta América como estes fervores, produzindo Bexigas e Sarampos, e nos outros reinos produziu guerras e outros efeitos semelhantes”. Os poros abertos devido ao calor dos trópicos absorviam os “ares infectos”. Ares “de manifestas qualidades, ou de qualidade maligna oculta, que por influência dos astros se movem” e que junto “às grandes mudanças de tempo” influíam diretamente na disseminação dos males. Além do clima, e da crença em “falsos médicos”, os vícios dos brasileiros ajudavam a propagá-los.
Eis porque nos adultos, as bexigas eram mais severas do que nas crianças. Contínuos banhos e excesso de exercícios atraíam a doença. Sangrar, purgar, enfiar o doente num aposento a salvo de ventos, cobrirem-lo com panos vermelhos, esfregar-lhes os poros para abrir as vesículas, lavar-lhe com água de salsa, aipo, funcho ou marcela era o tratamento corrente. Depois vinham as “mezinhas”, os clisteres de “caldo de galinha”, os lambedouros e xaropes, as dietas alimentares. Os ingredientes? Raiz de cana torrada, “água ferrada em ouro”, gordura de ganso, pós de osso, rosas secas, mingau de carimã, entre outros. No Tratado único das bexigas e do sarampo se encontra, com bastante clareza, a distinção entre a varíola e o sarampo. Persistia ainda no século XVII muita confusão quanto à individualização dessas doenças. E a importância do livro é a de descrever, com bastante rigor, as manifestações da varíola, fazendo a necessária distinção entre uma doença e outra.
Para Ferreira da Rosa, autor do Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, tão medonha quanto a varíola era a “bicha” ou febre amarela. Bicha, pois se fazia analogia dos sintomas da febre com as resultantes das mordidas de cobra peçonhenta. O veneno de uma ou de outra agiam em sete dias. Fazia-se urgente um “remédio preservativo e curativo”. “O mal da bicha fazia deserto de muitas cidades”, ou seja, trazia consigo mortalidade altíssima, levando consigo, pacientes e médicos. Mais tarde, o mesmo vocábulo passou a denominar as prosaicas lombrigas.
A causa da peste que vitimou gente na Bahia e, depois, em Pernambuco seria, novamente, um fenômeno astronômico: um eclipse lunar observado em 1685, aliado ao desembarque de barricas de carne podre, oriundas da navegação negreira vinda São Tomé, teriam viciado os ares. Mas não só culpa dos astros. Os tumultos dos povos, as agitações sociais e os pecados dos homens, também influíam sobre a saúde dos povos. E segundo Ferreira da Rosa, pecados como a prostituição e os concubinatos atraíam pestes. Rocha Pitta confirmava: dois homens depois de jantar na casa de uma prostituta morreram em 24 horas! E de nada adiantou a procissão pelas ruas de Salvador com a sisuda imagem de São Francisco Xavier a 10 de maio de 1686. Já, em Pernambuco, preferiu-se invocar são Sebastião e são Roque. Mas, a bicha ignorou orações e seguiu mordendo…
Texto de Mary del Priore. Baseado em “História da Gente Brasileira: Colônia”, editora LeYa, 2016.
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