Casamento, fornicação e erotismo

No início do século XVI, faltava prestígio ao matrimônio. Ele era suspeito. Era visto como um mal menor, sendo sua tarefa básica a de proteger contra a fornicação. Ele era, portanto, aos olhos da Igreja, uma obra da carne. E os olhos da Igreja eram os olhos de todo o mundo. Para ela,  a essência do indivíduo residia na alma. Por isso mesmo, ninguém se casava “para o seu prazer”. As pessoas não se casavam para si; e sim, para sua família.O marido não existia para fazer amor, mas para mandar. Nada sobrava para a esposa senão baixar a cabeça. Conformar-se.

Fora disto restava a educação sentimental feita através da ligação amorosa. Ligação precária e que se podia anular a qualquer momento. De preferência sem filhos, nem encargos. Não oficial ou sancionada. Mas nesta esfera estreita é que as emoções, sentimentos e sensações se manifestavam. Emoções, todavia, repudiadas no momento de fazer uma família. Sufocada dentro do sacramento, a licença amorosa, ou o erotismo, era o afeto vivido somente – ou de preferência – fora do lar, na relação extraconjugal.

No século XVIII, assistiu-se a um reforço das teses anteriores. Na época das Luzes o casamento foi objeto de um movimento literário ambíguo. Inspirada pela mitologia medieval e cortesã, a paixão pré-romântica, ilustrada pelo Werther de Goethe, publicado em 1774, insistia em punir a sexualidade. Quando Rousseau, por sua vez, introduz o que pensava sobre o amor para uma sociedade aristocrática em busca de prazeres, suas preocupações de valorizar a inocência e a virtude, apenas reiteram uma longa tradição de idealização, correspondente, sobretudo,  à vontade de esconder, se não de esquecer, o ato carnal.

Mas outra corrente de letras europeias, contudo, celebrou a sexualidade com bem menos recato. No mesmo século XVIII, textos poéticos e literários exprimem os desejos de uma elite obcecada pela busca de volúpia sensual e a do uso das técnicas eróticas mais perfeitas. Fruto da repressão sexual que suprimia até a o nu da pintura – tão exposto no Renascimento – esta sensualidade cerebral exacerbava o mito intelectual da virilidade, do qual D. Juan é um símbolo. Falante e galante, este século só tratava de amor nos salões aristocráticos e mesmo assim, dentro das mais estritas regras de etiqueta cortesã. Usou-se muito a coquetterie, fórmula que, respeitando decência e da linguagem, disfarçava habilmente as estratégias mais sórdidas de sedução. O coração contava, então, menos do que o sexo. O laço entre a hipocrisia das convenções, próprias às camadas ricas, e a tensão erótica que elas contribuem a reforçar, fornecerá o tema essencial para a libertinagem. Inspirada pela máscara da boa educação, esta retórica exprimia os constrangimentos de uma sociedade galante que matava o amor, ao transformá-lo em vício. Falar de sexo tornou-se uma compensação agradável para o vazio espiritual de uma elite. O retrato mais nítido desta situação foi feito por Choderlos de Laclos, em seu As ligações Perigosas.

Além da literatura libertina, o Ocidente conheceu entre os séculos XVII e XVIII a difusão da produção pornográfica. Escritos escandalosos marcavam a maneira das elites protestarem contra o puritanismo oficial. Afinal, em numerosas regiões do Ocidente moderno, as autoridades religiosas já tinham tido sucesso em transformar o sexo em ato abjeto e qualquer distração sensual, em tentação diabólica. É preciso, contudo, desconfiar da liberação idealizada cantada nos textos eróticos ou pornográficos. Expressão de necessidades não satisfeitas, esta literatura mais representa um contraponto à progressiva imposição da repressão sexual. Repressão que atingiu até os iluministas, estando muito clara no verbete sobre “erotismo”, da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert que o definia como uma “verdadeira doença”, um fenômeno da patologia médica.

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Nem todos os grupos adotaram estas atitudes, mas o aparente sucesso do ascetismo coletivo na Europa do Antigo Regime, resultou no que o filósofo Michel Foucault chamou de “domínio de si e do outro”. Domínio que promovia a derrota da vida e o desaparecimento do amor erotizado. O triunfo progressivo do casamento e do controle da sexualidade impediu a época das Luzes de aparecer como um período de revolução de costumes. Esta vai atingir – com exceção da liberdade tradicional de certos membros da classe dirigente – apenas uma estreita minoria popular, sobretudo no meio urbano. O Ocidente cristão seguirá hostil à ideia de felicidade e da emancipação as pessoas. Fora da realidade preciosa, mas, rara do amor conjugal, todos os outros germes de felicidade sexual, presentes na antiga sociedade, tendiam a ser desvalorizados.

Por volta de 1700, as cortes galantes, os chamados “salões preciosos” e mesmo os contos de fadas, – muito na moda, então – realimentam o ideal do amor impossível. Se o sentido exato desta linguagem é difícil de definir, nas grandes cortes europeias se dá ao sentimento  amoroso um lugar cada vez maior no seio da poesia. Poesia, por vezes, até piegas. O romance, gênero recém-criado se via, igualmente, tomado por temas amorosos. Tais temas, todavia, insistem em pintar, no amor paixão, uma catástrofe e uma doença própria a satisfazer as tendências masoquistas de certos heróis. É como se a modernidade tivesse feito desabrochar uma linguagem literária cada vez mais amorosa, enquanto o amor, ele mesmo, se tornava um desejo distante.

Os escritores franceses do século XVIII vão impor um novo modo de representar a paixão. Malgrado a presença de textos libertinos, a época da Revolução Francesa daria visibilidade ao culto romântico da paixão, ligando-o mais estreitamente à dor do que à felicidade. Os autores que então escrevem sobre o amor seguem divididos entre justificar sua existência ou condenar seus excessos. Bem poucos escaparam à idealização tradicional do sentimento. Tal idealização foi mesmo reforçada no século seguinte, com os autores românticos que preferiam demonstrar que as doenças que envenenavam seus heróis, matando-os ao final de cada estória,  provinham do veneno mais letal: o amor ele mesmo.

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Diferentemente de hoje, quando não imaginamos um casamento sem amor-paixão, no passado, as duas coisas eram quase incompatíveis. Não que o amor estivesse “obrigatoriamente” ausente dos matrimônios, sobretudo, dos arranjados, e presente, fora deles; estava, sim, submetido a mil constrangimentos, incluindo os de ordem sexual. O risco do casamento movido por sentimentos era o de subverter a função desta mesma instituição, desestabilizando a transmissão do patrimônio, a garantia de alianças e o predomínio de certos grupos de poder sobre outros.

Uma vasta corrente da literatura moralista que vai do século XV ao XIX identifica o amor a causas funestas, separando, radicalmente, o amor no cotidiano, daquele cantado em prosa e verso. No cotidiano, ou seja, no matrimônio, ele se justifica no serviço de orientação conjugal com os quais eram torpedeados os casais: “a primeira causa era a procriação e a educação dos filhos no temor a Deus. A segunda, é que o matrimônio se destinava a ser um remédio contra o pecado, um antídoto à fornicação. A terceira, ele deveria ser o instrumento de auxílio à mútua convivência, ajuda e conforto que um esposo prestasse ao outro”. Contudo, como demonstram os demógrafos, o sexo ilícito crescia no final do século XVIII ao mesmo tempo em que o casamento se tornava universal.

Exceção à regra foi a Inglaterra, onde o casamento não tinha finalidade de maximizar a procriação. Casamentos tardios e poucos filhos teriam antes impulsionado a revolução industrial e o sucesso do capitalismo. Os casais se escolhiam livremente, baseados na emoção que sentiam um pelo outro. O mesmo se observava entre camponeses que, casando-se mais tarde, escolhiam suas esposas dentro de um princípio de equilíbrio, igualdade e afetividade. Não tendo mais do que seu trabalho a repartir, o casal fica mais livre do que aqueles que, nas elites, tinham muito a dividir.

E será possível olharmos pelo buraco da fechadura da história para ver como se comportavam os casais, amando para valer ou detestando-se? O historiador Lucien Fébvre lembra que o casamento no passado é um “enigma”. Enigma, pois se encontram milhares de construções jurídicas e teológicas sobre o sacramento. Mas histórias, plenas, humanas e vivas sobre de como se vivia casado, são raras. Enigma, também, porque, durante séculos, um imenso esforço se faz nas sociedades cristãs, para “policiar e civilizar” seus membros; para fazer triunfar sobre os instintos, uma moral fundada na razão. Inúmeros “oficiais da moral” – padres, pastores, pregadores e confessores, físicos ou médicos – se empregaram com ardor e abnegação em alardear as vantagens de uma tal relação. Mas vantagens se ela fosse despossuída de paixões. Eles impõem o casamento. Eles o proclamam indelével. Mas eles não entram no seu interior. Eles exigem que os cônjuges sejam bons, doces, polidos, e, sobretudo, saibam controlar seus instintos. O cristianismo fez do matrimônio um sacramento. Quebrá-lo era um dos maiores pecados que o homem podia cometer. E quando os homens, por milagre de paciência, de sutileza e de imaginação conseguem fazer germinar, crescer e florir o amor, – esta impressionante criação – os moralistas lhes viram as costas. Se eles consentissem finalmente em colher a flor do sentimento amoroso no jardim dos homens era exclusivamente para oferecê-la a Deus e não, para ajudar os próprios homens. Poucos esforços foram feitos no sentido de proteger ou estimular as relações do amor com o casamento – da instituição protegida, sancionada, imposta por Deus e do sentimento vivido por homens e mulheres, na precariedade de suas vidas.

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As coisas mudam a partir do século XVIII. A sociedade tende, desde então, a aproximar as duas formas de amor tradicionalmente opostas. Um ideal de casamento se impõe, lentamente aos esposos, obrigando-os a se amar, como amantes. O erotismo extraconjugal entra no casamento afugentando a reserva tradicional. Passa a existir um único amor, o amor-paixão, o amor poderosamente erotizado e as características tradicionais do amor conjugal, tal como nos o evocamos são abolidas e consideradas como obstáculos residuais que retardam o triunfo do amor, feito, também, de sentimento e de sexualidade.

Vamos a Portugal, uma das matrizes de nossa cultura, para ver como se amava, então. Como seriam as representações sobre o amor no interior de uma sociedade ancorada no predomínio esmagador do mundo agrário, na dominação da aristocracia senhorial e eclesiástica, apegada às maneiras de pensar e a valores profundamente marcados pela religião? Mais. Como pensar o amor numa sociedade patriarcal, na qual a mulher é vista como um ser inferior e onde a tradição de mestiçagem, ampliada pela presença mourisca na península ibérica e depois, pelas viagens ultramarinas, estava na base das relações homem e mulher? Mais exatamente do norte de Portugal, herdamos, também, algumas características com grande influência em nossa colonização e, por conseguinte, na fabricação de nosso imaginário amoroso: a de padrões familiares marcados por altas taxas de ilegitimidade, a de domicílios chefiados por mulheres, a da migração masculina elevada.

Tais características teriam tido consequências tão evidentes, que delas Madame d’Aulnoy, deixou registro em viagem, à península Ibérica, no século XVII: que aí os jovens de famílias aristocráticas desde os doze ou quatorze anos, tinham suas “mancebas” ou amantes, havendo poucos que em tão verdes anos não estivessem atacados de males venéreos. Que tais mancebas, ostentavam joias e vestidos caros. Que se educavam, juntos, filhos legítimos e ilegítimos. E que nas casas mais nobres se falava abertamente das doenças do mundo, ou seja, da sífilis. Bem estranho ambiente para, aos olhos de hoje, imaginarmos um casal de felizes pombinhos. – Mary del Priore

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O casamento idealizado: rainha Vitória e príncipe Albert.

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