Casamento e divórcio entre afrodescendentes

          Quando a união não dava certo, casais afrodescendentes procuravam o divórcio. Em 1848, no Rio de Janeiro, Henriqueta Maria da Conceição alegava que “não só cumpria todos os deveres de mulher casada, mas, também por seus trabalhos continuados e tráfico de quitandas, em que já era ocupada antes de seu casamento, ganhava para manter a si e ao Réu seu marido, sem dar motivo algum para este a maltratar”. Queria a separação, pois seu marido, lembrando-lhe sempre “a lei de branco”, metia a mão nos seus ganhos. E ele mesmo explicava o que isso queria dizer:

“[A lei] mandava que tudo o que a mulher tivesse, a metade seria do marido – dizendo-lhe, por exemplo: você tem quatro vinténs, dois são do seu marido; você tem um lenço, há de parti-lo ao meio dando a metade a seu marido”.

         O marido, Rufino Maria Balita, costumava apoderar-se do dinheiro que Henriqueta ganhava com suas quitandas, pegando ainda as joias e o dinheiro depositado na gaveta. A comunhão de bens a que se referia a lei, era só em proveito próprio. Por considerar um desaforo a mulher “querer governar o marido” e ainda atrever-se a ficar chamando sua atenção, Rufino a cobria de pancadas. Não foram poucas as mulheres negras e mulatas ricas que desmascaravam casamentos realizados por conta de seus bens e “fortunas”. A cabinda Rita Maria da Conceição, casada com o crioulo Antônio José de Santa Rosa pelo “amor recíproco” que julgava ser o que os animava, descobriu que ele casara “não pela amizade que lhe tinha, mas unicamente pelo interesse que desse consórcio lhe resultava”. Afinal, tudo o que o casal tinha pertencia a ela. Ou a preta forra Amélia Maria da Glória que afirmava: “trabalhava mais que uma escrava, pois que lavava roupa, engomava e cozia, entregando todo o produto de seu trabalho a seu marido”.

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          O caso mais interessante, estudado por Juliana Barreto Farias foi o da forra nagô Lívia Maria da Purificação, em 1850. Quando conheceu o mina Amaro José de Mesquita, ele ainda era escravo do Barão de Bonfim, “servindo de comprador e copeiro”. Já nessa época, contou Lívia ao juiz, queria “viver vida folgada, bem-apessoado e traquejado na arte de seduzir”. Assim que a conheceu, ficou “deslumbrado” com seus bens: 12 escravos, joias, dinheiro na casa bancária Souto. E tantas fez, que entrou nas boas graças da africana. Tão logo começaram o relacionamento, Amaro pediu a Lívia que o “suprisse” com 300 mil réis, quantia que faltava para completar sua alforria. Ela lhe entregou o valor, na “condição de casamento”. Ao saber que a futura esposa pretendia fazer um “contrato antenupcial”, Amaro se mostrou resistente. O dito documento estabelecia a união “conforme as leis do país, mas, sem comunicação de bens, salvo os havidos depois do casamento e dos rendimentos que tiverem”. Ora, o preto mina, nada tinha. Nem podia vender, alugar ou emprestar nenhuma das doze escravas da mulher. Pior: ela já tinha filhos. Logo, se morresse, ele teria que dividir os bens com os demais herdeiros. Resolveu se casar, mas ao fim de três meses, Lívia foi ao Juízo Eclesiástico pedir a separação!

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          O casal contrariava a regra de “fazer pecúlio para a velhice”, ajudar a alforria mútua ou aumentar a fortuna do casal, critérios presentes em outros documentos sobre casamentos de africanos e seus descendentes. Certa Maria Angola e seu marido José Moçambique, por exemplo, acumularam pecúlio consistente. Ela com uma banca no Largo do Paço, onde vendia gêneros de primeira necessidade e ele, como marinheiro. Ambos unidos na devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, de cuja irmandade, procissões e festas participavam. Ao se separarem, em 1835, ela ficou com “uma morada de casas na cidade de Campos, no norte fluminense, três escravas e um conjunto de joias de prata e ouro. Em muitos casos, as esposas se revoltavam contra a agressão dos maridos. Altivez a autonomia eram suas características reconhecidas por vários cronistas. A “falta de ocupação dos cônjuges” ou a dilapidação dos bens não estavam entre as causas legais para o divórcio eclesiástico. Por isso, muitas alegavam maus tratos, a falta de cumprimento dos “deveres maritais”, adultérios e todo o tipo de violência. Tal discurso se encontrou indistintamente entre mulheres negras ou brancas.

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2)”, Editora LeYa, 2016.

 

 

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Casamento de negros escravos de uma casa rica, de Jean-Baptiste Debret.

 

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