Presença de adolescentes afrodescendentes na Colônia

              Adolescência é uma palavra que aparece ao final do século XIII. Ela designa, então, os anos que sucediam à infância, ou seja, dos 12 aos 18 para meninas e dos 14 aos 20, para meninos. Ausente da maior parte dos dicionários da língua portuguesa até o século XIX, ela aparece, por outro lado, nos manuais de medicina. Estava associada à segunda idade do homem – a primeira era a infância – e caracterizava-se por ser “quente e seca”, segundo Galeno, médico grego. Uma tal ausência no mundo luso-brasileiro não é gratuita. Ela significa que a fase de amadurecimento ou de crescimento dos jovens se perdia entre milhares de afazeres relacionados à sua sobrevivência.

             A juventude sempre suscitou reações ambivalentes e foi, em diferentes épocas, percebida e vivenciada de forma específica, segundo o grupo social no qual o jovem estava inserido. Os trabalhos do historiador francês Philippe Áries, uma autoridade e um pioneiro no assunto, sugeriam que entre o feudalismo e a industrialização se passava diretamente da infância à idade adulta. Sem adolescência. Hoje, sabe-se, que as coisas não eram bem assim. Em diferentes regiões do planeta, modalidades de saída da infância e entrada no mundo adulto obedeciam a rituais precisos. Um exemplo: na Antiguidade grega, a formação de jovens, particularmente em Esparta e Creta se compunha de um aprendizado de ginástica, caça, equitação, mas, também, de experiências eróticas nas quais meninos se submetiam às exigências dos “mais velhos” por meio de uma encenação na qual o adolescente era raptado por seu “amante”.

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           Na Idade Média, o termo “juventus” remetia a realidades diversas: a dos clérigos que, ao fazer seus votos de entrada nos monastérios, viviam o noviciado na juventude, mas, igualmente, a dos jovens nobres cujo ritual de entrada na cavalaria era codificado por sofisticada cerimônia de recepção. A literatura dos trovadores cantava, em prosa e verso, a juventude destes mancebos, capazes de se destacar por sua coragem e beleza física, enquanto a Igreja alertava contra as tentações que eles mesmos inspiravam. A partir da metade do século XVIII, conceitos como adolescência e juventude começam a se consolidar graças aos avanços da pedagogia, da medicina e da filosofia. O pensador Jean-Jacques Rousseau foi dos primeiros a definir a crise da identidade sexual, durante a puberdade, no seu conhecido livro Emílio.

           As poucas informações sobre a adolescência no período colonial mais contam sobre os rapazes. Sim, pois as moças tinham como única função preservar sua virgindade. Numa sociedade cristã, seu único destino foi, durante muito tempo, o casamento ou o convento, este último significando um confinamento muito maior do que aquele proposto pelos conventos masculinos. O que distingue a suas vidas das dos rapazes é a total ausência de liberdade.

            Quanto à adolescentes de nossos ancestrais africanos, as informações  surgem por meio de seus ritos de passagem, bem demarcados e vindos para cá por conta do tráfico escravo. Sabe-se que no Golfo da Guiné, de onde saiu às primeiras levas destes imigrantes forçados, cada aspecto da vida cotidiana permitia uma forma de aprendizado. A formação da juventude seguia um programa preciso e velava sobre a aquisição de virtudes morais, habilidades manuais, técnicas e guerreiras, atividades artesanais, comerciais ou místicas. Este desenvolvimento também incluía o desenvolvimento corporal, a sociabilidade, a obediência à ordem, o respeito à parentela, aos laços de sangue e a autoridade. A violência era permitida e encorajada por batalhas ritualizadas, que marcavam a passagem entre o menino e o guerreiro. Apostando na beleza física, na elegância dos trajes e dos penteados, na virilidade e insolência, adolescentes africanos construíam uma cultura particular. A estatuária em barro, feita na região de Kaduna, atual Nigéria, revela o rosto destes jovens cujo penteado cuidadoso em forma de coque era coroado por penas, e ornamentados com cachos e tranças laterais. Anéis e braceletes colocados nos tornozelos aumentavam seu poder de sedução.

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         A festa da circuncisão, na entrada da adolescência, era realizada com música e dança que registrasse a importância do momento.  Os cucumbis ou quicumbis – do quibundo “puberdade” – são os remanescentes desta tradição no folclore brasileiro. Com ranchos de canta e dança, realizados nas proximidades do Natal, época das congadas e da coroação do “Rei Congo”, um cortejo apresentava os “mametos” recém-circuncidados à rainha do Congo, após a lauta refeição do “cucumbe”!

         A presença de jovens negros nas festas religiosas era constante. No Rio de Janeiro em 1763, numa “congada” que mereceu a atenção das autoridades, o préstito do Rei Congo foi acompanhado de um “catupi”, – provavelmente o catopê, tipo de dança em cortejo que tinha lugar durante a congada – realizada “por moleques maiores”. Por outro lado, jovens índios eram convidados a dançar “caboclinhos” como se viu na igreja dos Pardos de Nossa Senhora do Livramento, em Recife, em maio de 1745. Era dia da festa de São Gonçalo Garcia – “da mesma cor dos caboclinhos” segundo um documento. Durante a luxuosa procissão, bailaram ao som de tambores e gaitas:

Nove rapazes índios do país, ricamente ornados e nus da cintura para cima ao modo pátrio. Cobriam-lhes as cabeças, capacetes lavrados de cordões de ouro matizados de broches de brilhantes com tremulante plumagem na parte posterior. Vestiam saiotes de seda com rendas e franjas de ouro […] cingiam cinturões de ouro em ramagem; cingiam os mesmos nos buchos dos braços com carrancas em várias formas. Portavam não poucas cascavéis (guizos) nos pés, presas em suas fitas”.

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              Especialistas afirmam que a verdadeira origem da Capoeira é um ritual africano, chamado de N’golo, que marcava a passagem para a vida adulta. Neste ritual os jovens guerreiros das tribos disputavam, com movimentos baseados na luta das zebras, as jovens mulheres e cabia a quem melhor sobressaía-se, o direito de escolher sua esposa entre as jovens, sem o pagamento do dote matrimonial. Os cativos descobriram que estes movimentos das zebras, quando usados com rapidez, destreza e malícia poderiam ser fatais para o oponente. Diante de sua situação difícil e da violência a eles imposta, eles começaram, sempre que podiam, a ensaiar esta forma de luta nas capoeiras dos canaviais, lugares nas plantações de cana de açúcar onde o mato fora queimado para o cultivo da terra.

  • Texto de Mary del Priore.

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Jean-Baptiste Debret: capoeira.

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